terça-feira, 29 de setembro de 2009

palavras



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"Ele disse que sabia sem as palavras como disse que a mãe ia morrer sem palavras". Enquanto agonizo - W. Faulkner
Fiquei assim, estático, ao ler estas palavras, ou melhor, a falta delas. Porque as palavras me completam, mas nem sempre. Muitas vezes são elas, justamente elas que me faltam e, assim fazendo, me descompletam dando-me sibilos de felicidade. Presença por ausência, diz-se. São como deuses: quando surgem me atordoam, mas quando se ausentam, desamparo-me. Neste momento ando por cristaleiras, por assim dizer. Finos cristais envolvem minha garganta. Não, não se apresse em querer socorrer-me, pois não estão a me cortar, por um fio pensaste. Apenas uma certa dificuldade em deglutir cacos de palavras. Gostaria de tê-las por inteiro, mas se soubesse como conseguir já não seriam as mesmas palavras, seriam sempre outras. Por isso me apaixono pela delicadeza de algumas delas, mas outras, um estorvo. As que cortam nem sempre são as mais precisas. Necessidade não é desejo. As mais imprecisas são aquelas que a gente sabe menos, mas em compensação são as que a gente mais usa. Garfo e faca, por exemplo, são palavras utensílio, mas que me descem mal. Hoje gostaria de deglutir silêncios, silêncios rodeados de palavras. O silêncio de uma frase me colocaria num profundo êxtase, um tobogã de possibilidades vertiginosamente deliciosas. Gosto disso, de me deixar escorregar em palavras aeradas. As palavras com menos chocolate causam profunda angústia. E a angústia é da ordem de uma terrível certeza: uma certeza sem saber algum. A angústia é o impronunciável da palavra. Um nome sem som é como uma casa sem vogal: inabitável. A angústia é a palavra desabitada por mim.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A gravidez de Maria

A gravidez Mateus Lopes


Maria era uma boa moça, simples e esvoaçante como aquelas areias escaldantes que a circunvizinhavam. No seu tempo ainda não havia esta classificação das vaidades que hoje reina no mundo entre quem faz escova progressiva, lipo, quem usa metacrilex ou botox. No seu tempo as coisas eram mais simples deste ponto de vista, mas não das questões humanas. Estas atribulações em tempo algum foram simples. O problema do coração humano sempre em conflito consigo mesmo vem antes de S. Freud ou W. Faulkner, Sófocles ou W. Shakespeare. Mas, retorno a Maria e sua simplicidade espartana. Vivia para seu marido que fazia um biscate aqui outro ali. Consertava caibros de telhados, fazia bancos de madeira e mesas para caberem até doze pessoas. Fazia estes e outros serviços como ninguém mais no mundo. E havia o céu por testemunha. Os raios e os trovões, que nesta época eram muito mais próximos, davam esta certeza inabalável. E o mundo se regozijava por ser apenas assim.
Maria a tudo olhava e admirava embevecida ao seu marido. Batia a roupa suja na beirada de um poço a uns duzentos metros de sua humilde casinha. Naquela época, todos se ajudavam de pouco a pouco. Quem tinha pouco distribuía o muito que tinha. Quem não tinha nada não ficava de braços cruzados. Embora se soubesse que desde os tempos imemoriais, a condição de pedinte têm sido uma das condições mais humanas de que temos notícias.
Maria, como já disse, também pouco pedia e muito se esforçava nos seus afazeres sem vaidade. Mas, eis que um dia se descobre grávida e a gravidez iluminou sua vida como nunca havia acontecido antes. Como mãe, passou a reparar mais em seu próprio corpo. Passava em sua barriga óleo de amêndoas e tâmaras com mel para proteger-se e cultivar o crescimento daquele ser-por-vir. E a cada dia sua barriga aumentava e, foi assim, que um sentimento estranho passou a ocupar todo o pensamento de Maria. Estava, finalmente, ficando vaidosa. E fazia questão de segurar a barriga com as duas mãos enquanto caminhava por entre as casas. Segurava seu tesouro. Segurava, por assim dizer, a si mesma. Mas não se segurava de contentamento. E, isto, não fazia questão alguma de esconder. Sua gravidez era assunto entre todos tamanha a alegria que passou a tomar conta daquela mãe-mulher. Outrora simples, agora se achava a pessoa mais importante do mundo. Tão importante que resolveu ser importante só para si. Como assim? Explico: como aquela sensação lhe era única e esfuziante, resolveu que deixaria a barriga crescer indefinidamente. E o que antes era uma sensação espetacular, passou a ser um escândalo porque mais de um ano se passara, sua barriga não parava de crescer e ela dizia que não queria tirar o neném para o mundo. Tinha um mau pressentimento em relação ao seu filho. Queria protegê-lo. Mas sua barriga aumentava a cada dia. Dentro da casa já não entrava mais. Aliás, já não cabia em lugar algum. Tiveram que construir um galpão - seu marido foi um dos principais mentores deste projeto, pois queria abrigá-la - que em pouco tempo também ficou pequeno para abrigar aquela colossal barriga que agora já transbordava para cima das montanhas.
Dizem, lá por aquelas bandas, que sua barriga cresce até hoje e que por isso seu filho ainda não pôde vir ao mundo.
Ela disse que a criança se chamaria Jesus.



JOSÉ

Olhos cobertos de lágrimas

ombros curvos/contrito

asfixiado,

mãos atadas

pelo destino

que era, é e será.

Pouco a fazer

pelo filho

ali exposto

quase nu

ensanguentado

mãos perfuradas

olhos ao céu,

arregalados;

‘Pai, por que me abandonaste?’

gritava o filho,

condenado.

E ele,

José,

ali, ali para sempre,

perguntava

porque seu filho

não o fitava.

Por que não era ele?

Por que não era?

Por que não?

Carpinteiro,

lançou

último olhar

para a lasca

de vida

pendurada.

O filho em cruz,

suspenso no ar

e o pai,

ínfimo na terra,

sem entender

porque o filho

agiu, agia e agirá

deste modo.

Por dentro,

o pai gritava

silencioso:

filho, por que me abandonaste?

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sábado, 19 de setembro de 2009

O triângulo amoroso


Entrei. Não sei o que me espera, mas do lado de fora já me parecia impossível continuar. Não foi sem temor que coloquei um pé, (o direito, por óbvias razões), depois a mão direita (sou destro, ora bolas), depois meu corpo foi totalmente puxado para o interior daquele espaço escuro. Puxado com enorme força. Uma força que até então não havia sentido daquele jeito: a força da paixão. Mas, sempre não será como se fosse a primeira vez? Ali, luz não havia, nem se sabia da existência de vida/vidas, qualquer uma por menor que fosse. Nem protozoários, muito menos aminoácidos ou plânctons primordiais. Não foi sem temor que já no interior, cautelosamente avancei tateando/tateando-me, quebrando as infinitudes e os vazios. O silêncio era ensurdecedor, mas ainda era muito cedo para quebrá-lo. Em minha quietude tentava ganhar tempo, um tempo no qual a ação verbal seria a passagem por aqueles descaminhos. Não sabia do minuto antecipado. Só o instante presente parecia conduzir-me adiante. Um caminho sem volta. Meu corpo estremecia excitado. Eu dera um salto no vazio e o vazio extranhamente me acolhera como uma árvore acolhe um pássaro após um longo voo. Eu dera um salto no vazio com algumas coisas; apetrechos de viagem, livros usados, anotações escritas em pequenos pedaços de papel / terceira margem dos livros, fotografias tiradas por mim de lugares onde nunca estive, sobras de esgotamento mental, excentricidades de um homem comum, pensamentos inconclusos, abarrotados de ideias que por razões que ainda desconheço já não cabiam nos degraus da minha vida. Como prosseguir num caminho só de ida, como cavalgar num cavalo que não sabe o retorno das coisas ditas essenciais?
Após um tempo insano, uma linha surgiu diante de mim. Depois outra e mais outra um pouco mais veloz. Pulei-as num giro seco no ar. Meu corpo estalou cingindo um arco no vazio e um clarão se fez. Cegou-me um pouco, mas logo depois meus olhos acostumaram-se ao calor daquelas novas sensações. Rapidamente as linhas sucediam-se inquietas, irrequietas. Agora já eram incontáveis e já virava as páginas com maior rapidez, mas não sem sofrimento, porque nunca é sem dor quando adentramos escrevendo ao interior de um livro, este espaço inicialmente escuro, indivisível, ianudível e assombrosamente desabitado. Mas, sem parar caminhei até ao final. Atravessei mares, florestas, intrigas, traições, remorsos, amores, ventanias familiares/transgeracionais, estradas transversais. Atravessei-me. E o livro finalmente chegou ao seu final. Travessia, pois agora já havia o sonhado triângulo amoroso: o escritor, o livro e você, meu leitor.

Ps: Agradeço a Eugênia Ribas Vieira a indicação de "Negociando com os mortos: a escritora escreve sobre seus escritos", o belo livro de Margaret Atwood (Rocco), que me inspirou.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O prisioneiro

Cândido era cego de nascença e estava preso há muito tempo. Esquecera do mundo lá fora. Esquecera dos amigos, dos parentes e a recíproca era silenciosamente respeitosa e verdadeira. Um mundo opaco, sem ecos e sem álgebras. Sua linguagem não passava de algaravias: palavras entortadas pela falta de ventos contínuos e razão desfeita pelo azedume das sobras das carnes.
Os filhos ficaram de resto. Deus parecia estar cego para quele homem luzidio. Já não sabia se era pardo ou desbotado por viver encostado por entre as sombras. Recusava-se a sair para os banhos de sol. Deram-lhe a noite por opção, mas só deixava sua cela em noites de tempestade. Esperava por um raio divino, consolatório. Esperava. E a espera não o fazia sofrer menos.
Já não sabiam mais qual havia sido a sua pena.
Um dia, seu caçula, Cândido Benício Filho, veio visitar-lhe. A candura de seu pai, afeito à vida pelo nome de batismo, delineava um bom filho. Benício era só o acréscimo do bem ao seu redor, sua genealogia sem desterros, por assim dizer.
Então o velho carcereiro, tão idoso quanto seu pai, tão trancafiado pela vida quanto Cândido, perguntou-lhe se sabia qual era pena de seu pai. O guarda-vidas era entendedor de seus silêncios e aprendera ao longo de anos de guarda que os silêncios de Cândido eram sua fuga para a saudade.
Entendia os silêncios de Cândido, mas era impossível lembrar-se dos motivos de tão longa prisão.
Foi então que, com os olhos inundados d'água, Cândido Benício Filho, tão cego de nascença quanto seu amado pai, revelou-lhe a inexplicável sentença do hediondo crime paterno: "papai diz que consegue ouvir a cor azul".

domingo, 13 de setembro de 2009

Saudade


"Eis a lição que aprendi em Jesusalém: a vida não foi feita para ser pouca e breve. E o mundo não foi feito para ter medida." Mia Couto - Antes de nascer o mundo. - Agradeço a iluminação deste livro a Adriana Guedes

Quando eu ainda pouco sabia da vida o meu avô se foi. Não era a primeira vez que ia. Já havia ido diversas vezes. Acho que nunca o alcancei. Ele estava sempre alguns passos na minha frente, quer por sabedoria ou conversa com os bichos. Meu avô era dado a conversar com plantas. Principalmente no alvorecer do dia em sua fazenda. Ele acordava os netos atirando caroços de milho pela janela. Só agora penso que éramos seus pintinhos. Mas era minha bisavó quem jogava as pepitas de ouro no terreiro e um árvoredo balançava treslocado a bicar o chão empoeirado. Meu avô chamava nos encantando com sua infinita sabedoria de homem simples, mais afeito a rolinhas do que a cabos elétricos para anunciar a chuva. Eu, de um pulo, iniciava a minha caminhada em direção ao curral para tirar leite de vaca. Meu avô conversava com com elas. Havia a Mimosa, a Malhada, a Laranja (mais bravia) e tantas outras com seus estrumes e olhos esbugalhados. Tenho certeza que elas respondiam. Desde cedo também aprendi a linguagem dos seres que não falam: begônias, lírios do campo, mariposas, lagartixas, tanajuras, joaninhas vermelhas com bolinhas pretas, sapos-martelo, caracóis de açude, grilos, goiaba com bicho (as brancas tem sempre mais do que as vermelhas), girinos, taioba, facão de cortar cana, laranja lima, tangerina (você pode principalmente conversar com as mexericas, são mais femininas, mexeriqueiras), pasto depois da chuva, abil, cajá e jamelão, ah, principalmente jamelão que põe nódoa roxa em roupa de toda criança. Eu criançava na linguagem com estes e muitos, infinitos outros seres iluminados pelas conversas do meu avô. À noite, os pirilampos eram estrelas cadentes, candentes que o meu avô mandava acender para iluminar o que não havia. O que havia era temor de fantasmas. Mas ele nos sossegava contando estórias ainda mais fantasmagóricas. No fundo da noite, todos os seres elementais aprumavam as garras em direção à minha cama. Encolhía-me embaixo dos lençois, fechava os olhos e pensava na bravura de meu avô que dizia já ter enfrentado ninho de vespas africanas. Zás! Elas voavam e ele as cortava ao meio com suas estórias encantadas. Era magia de encantamento de criança, vocês poderiam retorquir. A saudade avoenga ajuda a não inventar. Mentira, por verdade, como diz Rosa.
Ainda hoje, quando sinto saudade dele, entro na mata e fico ali por horas seguidas. Perdi um pouco da fluência de falar com os bichos e as plantas. Mas é como andar no escuro de olhos fechados, com a prática os descaminhos se encaminham. Por sorte, eles acabam lembrando de mim e logo puxam conversa atirando a solidão para a outra margem do rio. Assim, de mansinho como rio antes de temporal, meu avô aparece, encantado. Sei que de tudo ele fazia troça e ria alto da minha insciência de garoto, mas sempre tinha um ensinamento para cada galho retorcido da vida. Ele já me apareceu como um bem-te-vi, um curió, um trinca-ferro, uma mangueira (neste dia precisava de amparo e acolhimento: apareceu frondoso), uma névoa matinal, aliás, sobre isto ele sempre dizia: 'serração baixa, sol que racha'. Em seu mundo não havia fronteiras. Seu mundo era maior do que o universo. Talvez ainda maior do que o maior eucalipto que minha vista de criança alcançava. Deitava no chão de barriga para cima a espiar o infinto azul por entre os altos verdes. Foi meu avô que me ensinou a vida. Não-toda de uma vez, mas aos goles, entre uma ventania e um passeio a cavalo. Ensinou-me a amar as coisas simples do cotidiano. Só me esqueceu de dizer como é que estanco esta saudade.
"Porque ele tinha razão: o mundo termina quando já não somos capazes de o amar" (Mia Couto)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

RefleXos da Bienal


Vésper

A estrela da tarde está
madura
e sem nenhum perfume.

A estrela da tarde é
infecunda
e altíssima:

depois dela só há
o silêncio.

Orides Fontela



Xeguei agora da Bienal. Aliás, xegamos. Eu e minha filha (grande companheira das letras, desde que elas ainda eram letrinhas para ela, que seus olhinhos já faiscavam com os livros). De dois em dois anos fazemos nossa incursão ao mundo sagrado dos livros. É claro que a FLIP é muito mais xarmosa, mas também não queiram comparar aquele discreto xarme de Paraty, com aquele mostrengo do Riocentro. Fui, entre outras, para conferir se meu livro estava lá. Estava, e o stand da Rocco, uma lindeza. Lindeza também foi ver milhares, incontáveis crianças de escolas públicas, sorrindo com seus dentes ainda na muda, que invadiam as extantes dos livros. Crianças vindas de ônibus dos lugares mais distantes do Rio. É muito bom esta iniciativa das excolas, das excolas, excolas...peraí! Tá acontecendo algo de errado!!!
De repente, eu e minha filha ouvimos uma gritaria que jamais havíamos ouvido em nossas Bienais. Era uma verdadeira histeria coletiva. Já havíamos comprado tudo, ou quase tudo, que queríamos. Devía ser umas duas horas da tarde. Havíamos chegado assim que os portões se abriram nexta sexta-feira, 11 de setembro. Logo me veio um frio na barriga. Pensei nos ataques às torres gêmeas, mas me lembrei que estava no Brasil. Pensei ainda na época da ditadura, eu que estivera ali no Riocentro na festa do primeiro de maio, um ano antes de explodir a bomba no colo do sargento do exército. E me tranquilizei pela democracia, enfim instaurada em nosso país. Mas o tumulto e a correria só aumentava e, curiosos, rumamos para descobrir o que acontecia em nosso pavilhão, Setor Verde, eu que estava comprando uns livros maravilhosos na Cosac & Naify. E, assim que comecei a caminhar, lembrei que poderia ser um(a) grande escritor(a) xegando e fiquei imaginado quem seria: Luís Fernando Veríssimo, Mia Couto, Nélida Piñon, Ziraldo...sim, só poderia ser ele com seu Menino Maluquinho a tiracolo. Afinal, as crianças adoram ler suas histórias infantis. Lembro de ter pensado ainda por causa do frisson causado, que poderia ser a Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Machado de Assis, não sei, qualquer um destes reencarnados, ali, vivinhos da Silva. Não conseguíamos chegar mais perto, então reuní todas as minhas forças e perguntei a um dos organizadores: quem é o escritor? E a resposta veio como uma bala de prata que acerta em cheio o coração deste vampiro dos livros. - É a Xuxa!
Olhei para minha filha, ela para mim e, sem dizermos mais uma palavra, compreendemos que a nossa visita à Bienal havia chegado ao fim. Olhei para os livros, e eles despencavam atônitos das prateleiras. Alguns se suicidavam das estantes mais altas. Outros, já ao rés do chão, rasgavam-se todos como se rasgam para o lixo os extratos bancários. Vi muitos outros livros. Suas capas ficando vermelhas, coradas de vergonha. Ninguém mais os olhava e todas aquelas crianças, agora diferentemente enfeitiçadas, tinham os olhos voltados em outra direção. Mesmo assim, ou, talvez por isso mesmo, eles, em suas capas duras ou ricas brochuras se envergonhavam de sua parca condição, pois sabiam que mais uma vez a televisão havia roubado seus futuros leitores.

Ps: 1)Há algum tempo eu queria comprar a obra completa de Orides Fontela. (Orides Fontela, Poesia Reunida /1969-1996/ Cosacnaify,2006). Lembro de uma reportagem que a Folha de São Paulo fez com ela. Encontraram-na pobre, muito pobre, morando num apartamento minúsculo, deplorável, na periferia de São Paulo. Estava esquecida pela família, os amigos... Mas Orides não esquecia a força de sua poesia: densa, algumas vezes seca, noutras lírica, com brilho forte, vivace, contundente, rascante como um vinho de uma uva esquecida. "Onde a fonte?" Ela se pergunta. "Secas mãos conchas/plasmam-se/receptivos leitos/a seu fluxo/ Vasos aguardam pacientes. Onde a fonte? Na sede um frescor nasciturno/se acentua." Ela possuía a sede de todos os poetas. Sua alma queria o encontro inexorável com a verdade sem reticências. Sua vida interrompida, calou-se em 1996. Definitiva. A 'teia' poética de Orides tinha sua essência em seus jogos de espelhos, imagens em reflexos que jamais se apagarão com o tempo. "Sob a língua/palavras beijos alimentos/ alimentos beijos palavras. O saber que a boca prova/ O sabor mortal da palavra." Tornou-se, assim, imortal. Em nós durará sua infinita verdade através de sua palavra-poesia: "A um passo de meu próprio espírito/ A um passo impossível de Deus. / Atenta ao real: aqui. /Aqui aconteço."

Ps:2) No dia seguinte...Leio hoje nos jornais que Xuxa foi visitar o Pedro Bandeira que está tendo o seu livro "O mistério de feiurinha"(orientei uma monografia de fim de curso de psicologia que estudava este ótimo livro, sob a ótica do narcisismo) adaptado por Tizuka Yamazaki para o cinema com Sasha, sua filha, no papel principal.
Ontem tive o prazer de presenciar a Thalita Rebouças ("Fála sério", Rocco) autografando (beijando) para uma fila enorme e eufórica de adolescentes.
Leio também hoje uma pesquisa inédita de que 47% dos cariocas não têm o hábito de ler livros. Talvez, se fizerem esta pesquisa no Brasil, o ídice seja até maior. É uma pena e há vários fatores que concorrem para isso. (A pesquisa está hoje, sábado, 12/09, no caderno Prosa e Verso/ O Globo). Isto apenas comprova a minha tese de ontem de que a televisão possui um apelo de sedução irresistível (um amigo recentemente me disse que preferia não perder tempo com livros e ver tudo mastigado na tv - pensei de imediato, mas que vida fast food! Sem gosto de nada!) num país onde não há o menor apoio governamental para saúde ou a educação. Vivemos num mundo onde o que importa é a informação e não a formação (esta foi a minha fala como patrono numa turma de formandos em psicologia há duas semanas). Estamos num tempo onde parecer ser é melhor do que ser. Um mundo fake? A supremacia dos objetos em detrimento dos sujeitos é o que constatamos em nosso dia a dia. Resgatar a palavra com suas infinitas significações, seus deslizamentos metonímicos, suas nuances metafóricas, suas alegorias, seus mistérios e levá-las ao público é ofício de todos nós escritores. Assim fazendo nesta luta diária, poderemos abrir portais do pensamento, fronteiras da alienação e pensar novos rumos da leitura e da educação para nossas crianças, ávidas por um mundo melhor.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Espelhos de primavera

Espero pela primavera. Ontem, através da chuva, fiquei sabendo da proximidade da sua chegada. Sempre se espera pela primavera. Não é só pelas flores que se espera. É que ela traz consigo uma lâmina d'água de esperança para os dias que andam tão ressecados de humanidades. Olho a minha volta e deparo com outros de mim, muito semelhantes, quase iguais. Plantados e replantados pelos canteiros de asfalto. Poderia até mesmo pensar que sou eu ali naquele que passa distraído, ou naquele outro que acabou de atravessar a rua correndo com sua mochila preta e verde. Para onde este outro eu se dirigia? De onde ele vinha? Continuo a olhar a minha volta e, a não ser pelos cabelos brancos, aquela outra espécie de humano bem que poderia ser eu. Ou já sou eu/ele no futuro? Quantos eus habitam este planeta? E, por acaso, são tantos eus assim tão diferentes deste que sou, ou são reflexos ao infinito das minhas múltiplas maneiras de olhar avidamente o mundo? Diferenças, semelhanças, contrastes. A beleza está na diferença, bem sei, mas insisto nos ressecamentos dos olhos, nas marcas expostas da insensibilidade da espécie dita humana. Isto sim é que me atordoa. Me atordoa porque percebo que fora os narcisismos das pequenas diferenças, diria Freud, todos são outros eus. Isso não me leva muito longe, mas esta percepção da realidade tão próxima fixa, por assim dizer, contornos difíceis de serem vividos. Miopia progressiva, diria Clarice, diante da vida. Um pôr-de-sol só tem seu fulgor porque daqui a cinco minutos ele não existirá mais. Esta é a beleza do tempo que não se captura.
A nossa espécie dos humanos anda numa realidade cada vez mais precária. O espelho da vida torna-se dia a dia cada vez mais embaçado/fragmentário e, parece que ali onde habito, habita um outro e mais um outro e mais um ao infinito. E tudo é tão eu, que parece que estou sempre a ouvir os silêncios de Fernando Pessoa.
Constato na miragem destes humanos seres ressecados: o tempo e as imagens no espelho nunca são capturados.
Resta-me a primavera. Espero pela colheita.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Poesias num feriado: Debaixo do vento / Amor eterno / Then I close my eyes


Debaixo do vento

Jardín perdido,

arena, viento, nada.

Te he conocido.

Adolfo Bioy Casares

Quando escorria um vento

Dizia-se e já se foi.


Um dia num jardim secreto

Repleto de ousadias

O vento testemunhou uma saia

Repleta de fantasias.


O segredo deixou suas pegadas

Entre vadios que não pisavam

E o frio dos pensamentos

Que não deviam.

Escorreu o que não escorria

A saia de vestir e a serventia

Tudo servia

À menina do vestido

Que do vento sabia/

Que escorria por entre seus jardins secretos

Suas frestas e fantasias.


Quis assim o diabo-destino

Duas mãos enterrarem

Sob o vento/

As saborosas maledicências

Durante um indeciso desacordo.


No jardim secreto/

No jardim secreto/

Escorria uma fantasia

Entre mãos trêmulas

Por debaixo do vento/

Quatro mãos ensaiavam

Percorrer/

Lívidas/

Por onde escorria a fantasia.

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Amor eterno

Na sexta-feira jurei amor eterno

No sábado propus-lhe casamento

No domingo nos separamos

Porque era véspera de segunda.

Deixei escapar os dias

Deixei escapar os santos

E todos os demais feriados enforcados.

Um ano inteiro se passou/

Não foi só uma sexta ou um fim de semana

Na verdade perdi o sem fim dos dias.

Foi bem no fim da vida que lhe fiz outra proposta:

Morre amanhã comigo?

Deu-me um tapa na cara na frente de nossos netos.

Todos riram e pensei em bom caduquês:

Então amanhã choro intransitivo.


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Then I Close My Eyes

(sob uma música de David Gilmour)


Enquanto o mundo se diverte

Entre atos e calafrios

O destino pune

Mal acordo/

Mal os instantâneos/

Males oblíquos à revelia

Enquanto isso.


Enquanto o mundo acorda

Teu olhar sonha sem mim

Por onde caminhará

O lençol do horizonte

A roçar sua pele azulada

Fria/

Rio entre pedras

Por onde caminhará

Fria/

Nua, as palavras.


Enquanto fecho meus olhos

Você dorme longe sem minhas palavras

Azuis/

Silêncio.

Então fecho meus olhos

Para ver o que nunca soube

Sobre encantos e partidas.

Entretanto/

Entre árvores e lilases

Coices reverberam inúteis/

Extemporâneos, enfurecidamente cegos

Azuis lábios/

Carnudos quase ensanguentados.


Enquanto o mundo se diverte

Entre atos e calafrios

Teus olhos frios

Azuis/

Tua pele/

Tua pele/

Tua pele/

Só encantos e partidas.