segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A ilha / Para Adolfo Bioy Casares


Lentamente contornei a ilha. Agora já não restava muito para alcançá-la. Avistei-a ao longe, num relance. Estava de costas com seu indefectível manto negro. Seu cabelo havia envelhecido mais do que os musgos sobre o grande muro de pedras. Uma mecha branca contornava o céu azul tal como um halo em torno da lua. Minha visão agora prateava já que faltavam poucos metros até o topo daquela colina de pedras brancas e esverdeadas. O caminho era sinuoso, íngreme, mas finalmente após tantos anos eu a encontrara. Sabia que era ela a quem eu buscava. Sabia de cor. Por tanto tempo em minha vida decifrei vorazmente cada centímetro de um vasto enigma naquela ilha afim de colocar minha única meta em ação: encontrá-la. Muitos haviam fugido dali temendo esta hora, mas eu julguei-me mais fiel aos meus princípios se quisesse antecipar o encontro. Agora vejo como fui tolo. Achei que pudesse ludibriá-la.
Nas noites sonhava desperto com este momento. Durante os dias, traçava planos, fazia sinais na areia que só eu compreenderia. Na verdade eram sinais para mim mesmo. Talhei pedras com as unhas até ficarem em carne viva. Rasguei cipó venenoso com os dentes e beijava os regatos para saciar minha febre. Procurava a verdade nas minhas perguntas e não me envergonharia com ilusões para as minhas respostas. Os anos de busca infinda haviam me ensinado a não enveredar por respostas triviais. Não mediria esforços para encontrá-la.
E este momento finalmente chegara. Estava agora a poucos passos, alguns metros. Era gigantesca. Como poderia não tê-la visto anteriormente? Havia passado por aquele lugar dezenas de vezes naqueles anos. Contudo, estremeci. Ela era tal como em meus sonhos. O frio do medo rangeu-me os ossos das mãos prostadas, contritas, em holocausto. Ajoelhei-me em sinal de respeito. Sabia que ela me olhava desde um lugar que seria impossível a fuga. Mesmo que quisesse fugir, minhas pernas aquartelavam-se sobre montículos de folhas moídas que certamente já haviam servido de base para outros joelhos curvados em reverência. Agora suava frio. Sentia um ruído cinza descer pela minha espinha em direção ao chão vazio. O medo aumentara terrivelmente e o que eu chamava de sensibilidade já não passava de anestesia. Os céus calaram-se por alguns minutos. Suficientes para a minha partida.
Já não era eu que estava diante da morte. Apenas um corpo frio, inerte, que já não implorava mais nada. As letras sobre os espelhos na areia desfaziam-se ou eram bicadas pelas gaivotas rigorosas. O lume que antes cegava o cais, recolhia-se em estrumes tardios. Enxofre e pedaços de pão ázimo soluçavam na azia daquela tarde.
Agora, as dúvidas haviam cessado e os temores que acompanharam décadas de uma vida, jaziam congelados sobre um ninho cheio de vazios, que ao sabor do vento, grisalhos, espalhavam-se finalmente, para além da ilha.

domingo, 23 de agosto de 2009

O escritor, sua memória e seu ofício

"O escritor", escultura do italiano, Giancarlo Neri

É sempre marcado pelo passado que se escreve. O ato de escrever é, de alguma maneira, uma tentativa de reconciliação com nossas memórias. Ora, a memória é também composta por restos fragmentários que ficaram inconclusos na vida cotidiana. Muitas vezes são restos que nos assombram, noutras nos deterioram pela fragilidade à qual eles nos expõem.
Freud dizia que uma das funções de uma análise era preencher as lacunas da memória e, assim, livrar o sujeito de seus traumas e medos infantis que ficaram soterrados sem a menor possibilidade de dar um sentido claro ou uma significação coerente. Então, uma análise também é resignificar os fatos adormecidos, as histórias submersas, verdadeiros tesouros arqueológicos da nossa infância vivida ou devaneada.
Qual é a diferença entre o viver e o devanear? Para o psicanalista, o que importa é a realidade psíquica e, não propriamente, a realidade vivida, pois é desta realidade que o sujeito reconstrói sua vida no presente e a relança para o futuro. É desta realidade que ele sofre. Shakespeare, escreveu uma peça que se chama As you like it, ou, 'assim é se lhe parece'. A vida é como você a enxerga. Igualmente para o escritor, não há uma separação tão nítida entre a realidade e a ficção. Aliás, é melhor que não haja mesmo, pois ele vai construir realidades ficcionais para que o leitor 'viva' a vida de seus personagens como se ele também fizesse parte da história. Entrar dentro de um livro, é como entrar dentro de uma enorme caverna com seus labirintos em busca de uma aventura, de um romance ou de uma caçada policial sem passar pelos perigos que os personagens vivem.
Existem cinéfilos que acham que a sétima arte é insubstituível. Eu adoro cinema, mas como escritor, percebo que a "oitava maravilha do mundo" é a capacidade fantasística do leitor. Um bom romance consegue fazer despertar no leitor um grande diretor de filme e rodar cenas inimagináveis através da realidade psíquica sem que para isso ele precise levantar do sofá. Por isso se diz com frequência que "o livro era melhor do que o filme", porque o leitor já havia feito o seu filme dentro da sua própria mente.
Assim, o leitor se torna co-autor do autor passando magicamente a fazer parte da 'memória' vivida deste. Memória vivida ou memória inventada, pouco importa.
Recentemente, uma leitora comentou acerca do meu livro A última palavra, dizendo que "só quem amou apaixonadamente pode viver tal ira dos personagens". E ela tem razão. No plano ficcional ou na vida real, é preciso que tenha havido um grande amor para que um grande ódio surja como contraponto. Mas, pergunto novamente: qual é a diferença entre a realidade e a ficção? O limite é extremamente tênue. Também ouvi de outra pessoa: "no início tive muita raiva dele, mas depois entendi a minha raiva e passei a prestar mais atenção ao discurso tão feminino dela". Sem querer arriscar aqui uma interpretação, poderia dizer que a leitora já havia se identificado com ela ao ter muita raiva dele.
São memórias afetivas que estimulam nossas identificações. São atavismos perdidos que um livro pode recuperar. Um livro diz respeito à memória do seu autor, mas produz do lado do leitor, a possibilidade de recuperar imagens perdidas, tal como num filme musical remasterizado. Porém, o que é mesmo memória e o que é memória inventada em relação ao próprio leitor? O déjà vu é algo que o sujeito viveu, ou foi 'fabricado' pelo autor confundindo de vez as lembranças perdidas?
O ofício do escritor é inventar memórias: as suas e a dos outros. Lá onde não havia nada, você coloca uma ação, um romance no qual o sujeito no próximo encontro com sua amada vai dizer as palavras que o protagonista disse e que parece que saíram de sua boca. É comum lermos trechos inteiros de um livro, ou uma poesia, e acrescentarmos que "era exatamente isso que eu pensava, mas não sabia como falar". O escritor fala, então, ao coração do leitor. Empresta sua voz (e , claro, dos seus personagens) àquele que o lê.
Muitas vezes, o escritor se torna uma espécie de ghost writer para o leitor. Mas, isso acontece também dentro do próprio romance como é o caso de Cyrano de Bergerac, no qual o personagem, que se achava muito feio, escreve para que um outro o interprete. A palavra do escritor tem por função fazer ponte entre os abismos que existem na vida das pessoas e, assim, possibilitar a crença de que o leitor possa tocar com suas próprias mãos regiões antes inalcançáveis.
Há enormes paralelos entre o escritor e um psicanalista. Um deles diz respeito a que ambos possibiltam que o leitor ou o paciente interprete seus próprios textos. O texto do escritor é interpretado pelo leitor através de suas experiências pessoais e outras leituras. O psicanalista leva o paciente a formular também seus próprios textos, a escutá-los, dando a cada palavra proferida a devida dimensão de sua paternidade e autoria. Não é à toa que alguns analisandos terminam suas análises e vão escrever livros relatando sobre o percurso transcorrido. Vão ficcionalizar sobre a realidade inventada, a memória perdida e a redução inesgotável de suas dores. Escrever sobre o resgate da memória perdida é refazer a parábola do filho pródigo ou do pastor que tendo cem ovelhas e perdido uma, largou as noventa e nove e foi atrás da que se perdeu. Certos pequenos restos perdidos do passado são mais incômodos e contundentes (possuem a força de um tsunâmi) do que toda uma biblioteca de Alexandria de pura e boa memória.
O escritor é um sujeito que sofre. Também possui suas humanidades, poderiam vocês contra-argumentarem. Mas, não só. O escritor sofre, padece da palavra. Sofre dela, por ela e através dela. Sofre e se regozija pelo encontro. Sofre pelo desencontro tal como no fim de um baile de máscaras; 'não era ele, não era ela'.
A memória do escritor é atualizada na palavra construída, inventada por ele e, assim, resignificada sobre o tempo perdido. Quem escreve, não perde tempo. Quem escreve, não se perde do seu tempo. Quem escreve, não se perde no tempo. No tempo das memórias inventadas.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Como fazer para encontrar o céu aqui na Terra?


mirante040x-1.jpg image by fly_jf

As montanhas de Minas Gerais aproximavam-se com seus contornos naquela tarde de uma sexta-feira pela Br 040. Eu ia dar aula no mestrado em Juiz de Fora, terra de grandes amigos e inúmeras saudades. Contra o céu azul pairavam algumas nuvens sujas de rosa, com algumas pinceladas de amarelo limão e branco Kilimanjaro. E a pergunta a seguir me veio a cabeça. Quando cheguei no hotel, peguei uma folha de papel e, tal como um raio que desfere impiedoso o seu golpe, escrevi estas possibilidades de respostas para mim (que não me saciaram, nem me responderam de todo, portanto, convoco para que vocês continuem) mas, agora, passado algum tempo, divido com vocês.

Como fazer para encontrar o céu aqui na Terra?

1- Deixe de lado os preconceitos

2- Siga o preceito do seu coração

3- Seja alegre

4- Se permita também ser triste

5- Se permita até não ser

6- O ser humano é isso: alegre e triste, simples e trêmulo

7- Esqueça as horas

8- Mas não das pessoas

9- Procure pelo seu irmão

10- Mas não tente achar sua irmã (permita que ela vá, livre como os dias que sempre ondulam)

11- Apenas permita que ela te ache

12- Abra os braços para um abraço

13- Abra as mãos para os aflitos

14- Segure sua mão oposta

15- Segure a queda premeditada

16- Não ponha invólucros no sorriso

17- Costure uma roupa alegre

18- E também outra com o tecido da dignidade

19- Não saia de casa à toa

20- Mas saia de casa para ficar à toa

21- Encontre um amigo perdido

22- Encontre alguém perdido

23- Faça dele um amigo

24- Saiba encontrar o sol num dia chuvoso

25- Principalmente para aqueles desabrigados pela vida

26- Saiba ouvir o canto dos pássaros

27- Mesmo que eles só existam na sua imaginação

28- Renuncie ao ato contínuo de renunciar a vida

29- Renuncie ao desespero

30- Renuncie ao fato de querer dar trégua a vida

31- Não renuncie nunca ao amor

32- Nem tenha medo de amar apaixonadamente

33- Mesmo que dele não se tenha muitas esperanças

34- Regue a vida com um balde de carinho

35- Regue um encontro

36- Plante uma semente de futuros

37- Regue com acordes suaves

38- Espere para ver os sons nas tonalidades das nuvens

39- E os galhos vergando para dar sombra a sua alma

40- Estremeça com o frio

41- Dos corações gélidos de indiferença

42- E dos desagasalhados pela vida

43- Indigne-se com a falta de indignação

44- Plante uma lágrima

45- Numa caixa de lenços abandonada pelos amantes

46- Desenvolva projetos

47- Um trevo em forma de anjo

48- Um manto costurado de sorrisos

49- Uma pegada recente plantada na relva macia

50- Acredite que você acredita em seus sonhos

51- Em que crêem os que não crêem?

52- Suba uma colina e de lá grite uma palavra que nunca tenha sido dita

53- Invente uma palavra e ela já será uma frase, uma sentença, uma

oração

54- Assim, os céus descerão

55- Dê uma bússola para seus filhos

56- E ofereça o caminho do mundo para eles

57- Encontre o filho perdido dos outros

58- Você - nunca se esqueça - pode ser a bússola que eles necessitam

59- Reserve um lugar na primeira fila da generosidade

60- Mas justamente por isso compre mais um lugar

61- Nunca se sabe quem estará precisando

62- Há sempre alguém a mais

63- Há sempre alguém com menos

64- Reserve a expectativa para O Encontro

65- Seja gentil, isso gera Gentileza

66- Não desperdice sua bondade com quem não a mereça

67- Não se impaciente com o atraso dos outros

68- Mas se impaciente com o pouco caso, a indiferença

69- Pegue seu saca-rolhas preferido

70- Abra uma garrafa de nuvens

71- Abra um pote de anti-guerras

72- Abra uma lata de soluções

73- Procure freneticamente a sua

74- Alie-se ao mar

75- Alicie-se com suas espumas

76- Recrie o vento

77- Sopre um sudoeste em seus próprios cabelos

78- Mova as dunas de lugar

79- Desperte um rio

80- Seja uma correnteza

81- Deságue suavemente no mar

82- Veja que você pode ser doce e abissal ao mesmo tempo

83- Seja luz para que haja sombras

84- Seja inverno para que te sucedam primaveras

85- Seja complexo para que possam achar em você suas partes mais

simples

86- Eleve uma criança ao colo

87- Eleve um pensamento

88- Não crie limo para outros escorregarem

89- Antes, seja um tobogã de vertigens

90- Leia um livro para um cego

91- E também para uma criança ainda cega para o alfabeto

92- Conte uma história inesquecível

93- Invente muitas outras

94- Se invente, ou melhor, reinvente-se a cada dia

95- Seja um agricultor de verdades

96- Semeie com seus princípios

97- Adube com os meios mais sinceros

98- Certifique-se da honestidade dos fins

99- Mas não abra mão da colheita afinal,

100- Home is where the heart is.

101- Seja simples

102- Pinte um quadro

103- Dilua-se em cores

104- Não seja noir, black

105- Mas permita-se ser dark

106- Cante um hino

107- Pinte sua história

108- Seja um cavalete para os instáveis

109- Dilua-se em outros

110- Mas nunca se perca de você mesmo

111- Equilibre-se numa única nota

112- Faça dela sua harmonia

113- A partitura da sua vida

114- Crie cores jamais inventadas

115- Sorria em lilás

116- Faça um aperto de mão em azul cobalto

117- Dê um abraço em Terra di Siena

118- Solfeje em verdes Paul Veronese

119- Reze em amarelo van Gogh

120- Tome um café às margens do Danúbio

121- Suba o Everest dos teus sonhos

122- Eleve-se um degrau acima em tua vida

123- Seja você e mais alguém

124- Seja outros, plural

125- Mas permita-se sentir a solidão pela falta destes mesmos outros

que habitam em você

126- Incline-se um pouco mais para ouvir o outro

127- Curvar-se pode ser um ato majestoso

128- No fundo, você estará reverenciando a você mesmo

129- Um gesto para ser seguido por todos ao infinito

130- Passe um café para seu amor ao cair da tarde

131- E verás a tarde soerguer-se impávida, um colosso

132- Festeje o aroma da broa de milho

133- Lembre-se que um simples campônio plantou, regou, até que a

espiga estivesse pronta para seu usufruto

134- Lembre-se deste seu parceiro imaginário

135- Porque lembrar-se dos outros também é cuidar

136- Portanto, para cuidar de você mesmo, basta que não se esqueça de

você mesmo

137- Lembre-se da sua infância

138- Da primeira goiaba comida

139- Da primeira árvore que subiu na vida

140- Da primeira queda

141- Ah, este foi seu outono

142- Caíste com a primeira folha / outono da vida

143- E descobriste o valor de aprender a se erguer

144- Mas, lembre-se também do primeiro amigo na escola

145- Da primeira professora

146- Do primeiro brinquedo

147- E da primeira traquinagem feita com seu melhor amigo

148- Suspire pela lembrança do primeiro olhar apaixonado

149- Sorria tristemente ao lembrar-se do primeiro não

150- Conte para todos como foi seu primeiro sim

151- O susto, a emoção e a ardência do primeiro beijo

152- Ah, quanto encanto há no primeiro beijo

153- Ainda não se está no mundo da lua, mas pode ser seu Everest

154- A doce escalada até a conquista do outro

155- Não deixe a tinta do seu passado amarelar

156- Pegue suavemente o pincel

157- Faça do seu corpo uma tela viva, caliente

158- Onde outros possam perder seus olhares em suas campinas

verdejantes

159- Mergulhe em Rouge Naphtol Noir, a cor inconfundível das paixões

160- Apaixone-se pelo adolescente que você foi

161- Seja uma ilha de fantasias possíveis

162- Recrie antigos conceitos

163- Uma ilha pode ser uma pessoa cercada de felicidade por todos os

lados

164- Então, pule a cerca e caia nela

165- Uma ilha é um oceano de possibilidades

166- É sentir o aroma da primeira fornalha, e ser grato por poder

presenciar este momento mágico, solene

167- Há milhões de pessoas neste mundo que esperam ansiosos por este

instante

168- Assim como uma lagarta sonha em ser borboleta

169- Assim como um salmão sonha em subir o rio

170- Ou como um filhote de pássaro aguarda para arriscar o primeiro

vôo

171- Assim também o jaguar corre desenfreado atrás de sua gazela

172- Ou como os corvos festejam o amadurecimento do milho

173- Faça um espantalho para espantar os humanos-corvos

174- Espante-se com a vida, não seja indiferente a ela

175- Afague um cachorro

176- Ande num cavalo a galope

177- Amarre com cipó um feixe de lenha

178- Procure pelos gravetos mais simples

179- Estes lhe darão o melhor fogo

180- Para queimar os temores

181- Para dissipar a escuridão de suas trevas

182- Não se afaste das sensações tormentosas

183- Tente, ao menos, compreendê-las

184- Asse um peixe, multiplique seus pães

185- Convide os amigos para um vinho

186- Suba uma serra com névoas

187- Deite sobre uma pedra

188- Olhe atentamente para as nuvens que festejam sua chegada

189- Elas indicarão a direção do vento

190- Pense que essa direção pode ser o sentido há muito esperado para

sua vida

191- Recrie sentidos, nuvens-animais, nuvens-castelos, nuvens-

hieróglifos

192- Invente novos rumos, outros caminhos

193- Mergulhe no rio, que é sempre outro

194- Mergulhe em outras vidas

195- Prenda a respiração

196- Solte lentamente o ar

197- O seu e o dos outros

198- Compartilhem do mesmo ar / hálitos da vida

199- Seus desejos / Seus enamoramentos / Seus encantos

200- Mas, mistério! Nunca revele todos os seus segredos...

sábado, 15 de agosto de 2009

Entre alfaces, rúculas e sorrisos


As coincidências existem para que a emoção da surpresa não perca em nós o calor disto que chamam vida. Da vida pouco sabemos. É preciso caminhar sobre a cena da vida. Só podemos saber um pouco sobre ela quando, tal como no filme de Almodóvar, nós nos arriscamos a "falar com ela". Portanto, fale com ela, fale com a sua vida. Mas, vocês me perguntariam: falar o quê? Às vezes algumas pessoas querem grandes sistemas filosóficos para debater com a vida. Outras, as mais devotas, querem que tudo caiba dentro da religião oficial de seu time no céu de sua vida. Ah, e existem também os céticos com suas dúvidas obsessivas quase infinitesimais; os astrólogos que fazem previsões no tabuleiro estelar de xadrez que Copérnico radicalizou com o heliocentrismo e, last but not least, existem os cristãos novos, estes que acreditam piamente em São Google e sua Wikipédia que parece responder mais rápido do que qualquer deus de plantão aqui na Terra. Estes, coitados (por vezes, ah, tenham dó de mim, eu também sou um destes, afinal, quem escapa?) quase não falam, apenas teclam solitários diante das telas desta cartografia celestemente diabólica.
Neste sábado, fui convidado para almoçar com uns amigos queridos que estavam numa pousada charmosíssima, simples, num lugar quase paradisíaco chamado Canoas (entre Albuquerque e Teresópolis), entre montanhas, pássaros e um riacho que para minha felicidade não se acalmava. Os quartos tinham nomes literários. Minha amiga me disse que quando a dona da pousada começou a falar os chalés disponíveis ela disse logo na primeira: "Pára! É esta." E ficaram na 'Clarice Lispector'. Ela me disse que sabia que eu também escolheria esta e não a Vinícius de Moraes ou a Machado de Assis, etc. Vinho da uva tannat, truta ao molho de ervas finas, doce caseiro, café expresso, céu azul entre verdes das montanhas que já se manchavam de ocre com os raios de sol enviesados, enfim, um fim de tarde para não acabar nunca. Nunca mais.
Na volta, na pequena estrada de mais de 8 kms (parte de terra, asfalto e paralelepípedos) que separa a pousada da estrada, parei logo no início numa bela plantação de hortaliças.
- "O senhor vende aqui mesmo?" Perguntei para um homem que carregava uma pequena caminhonete.
- "Eu não, mas o Seu Ita vai vender para o senhor agorinha." Me disse o simpático sujeito.
E lá veio o Seu Ita. Passinho miúdo, chapéu de palha esgarçada na cabeça. O vento soprava fino naquele fim de tarde. O céu azul esfriava ainda mais os tons variados de verde que se espraiava plano entre montanhas. Veio sério. Quase cabisbaixo. Quando chegou na porteira olhou mais sério ainda para mim e perguntou:
- "Boa tarde. O senhor quer alguma coisa?"
- "Boa tarde. Um pouco do que o senhor tiver, Seu Ita."
- "O senhor sabe o meu nome?" E ele abriu um sorriso do tamanho da aquarela desdentada do Brasil.
- "Tenho alface crespa, rúcula, agrião, brócolis paulista..." Deu uma pausa e emendou. "O senhor sabe que Deus respira através desta prantação? Isso tudo qui seus zóio vê é testemunho de Deus."
Disse isso, me deu as costas, e foi-se pela plantação afora. Depois de uns dez minutos ele retornou com um ajudante. Em suas mãos, tudo era o que não cabia.
- "Olha, o senhor vai comer a melhor alface que o senhor já comeu em sua vida." Trazia em suas mãos rudes, alguns pés enormes, verdinhas, ainda molhadas, quase virgens. Era um santuário, e ele me trazia hóstias para que eu me purificasse diante delas. Ele sabia que estava me vendendo parte de seu tesouro. Abri o porta malas e as hortaliças foram entrando. Percebi que "um pouquinho de tudo" que eu dissera antes, era muita coisa e o porta malas lotou.
- "Quanto é, Seu Ita?"
- "Oito reais. Mas estas duas rúculas são de benefício para o senhor. Prô senhor voltá di novo. Lá na cidade o senhor só encontra destas murchas. Olha como estão verdinhas." Dizia enquanto ele mesmo colocava as rúculas no meio daquela horta que se tornou o meu carro.
Quase não acreditei no preço. Dei dez reais e disse que ficasse com o troco.
- "Esta horta é a minha vida." Disse Seu Ita sorrindo e agradecendo o pagamento. Dizia isso para mim e, ao mesmo tempo, percebia-se, para a própria horta, pois era para lá que ele agora dirigia seu olhar e seu sorriso.
Fui embora pensando na sua simplicidade, na alegria em servir, na alegria em perceber que trazia o melhor da sua horta para um sujeito da cidade totalmente estranho a ele. Talvez ele tivesse percebido a minha felicidade em estar ali. Uma felicidade enorme num tempo ínfimo. O dia já beijava a noite e eu precisava retornar. E tudo aquilo era o seu mundo, sua comunhão, sua vida com a qual dialogava coisas simples, mas essenciais à 'pedra' que havia em seu nome. Pedra que não servia para colocá-la em seus sapatos ou atirá-la nos outros. Tudo menos uma Intifada.
Sem contemporâneas teorias estapafúrdias, aliás, sem filosofia teológica alguma Seu Ita conversava no cotidiano com sua lavoura arcaica.
Apenas, como no filme "O sol por testemunha", esperando que os céus, ora trouxessem chuvas, nuvens, alguma brisa suave, um pouco de sol e mais chuvas e mais nuvens, alguns sorrisos, e outra vez um pouco mais de sol no transcorrer de seus dias.
Carlos Eduardo
Ps: Em geral, é muito difícil perceber a idade do homem do campo sempre castigado na pele por ficar ao relento do seu céu, aberto às intempéries. Mas, me atrevo a dizer que já iam longes os seus dias. Que os céus o protejam.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Crise criativa

Escrevi alguns temas para desenvolver. Dei-lhes nomes, situações do cotidiano, outras inventadas, mas verdadeiras, verdadeiramente inventadas. Saí pelos campos atrás de uma boa história para escrever. Li muito, muitos romances. Alguns falavam sobre a natureza humana, outros sobre a decadência desta natureza, outro ainda, este mais recente, descrevia de maneira mística ou sobre a ótica do realismo fantástico, uma linda história de amor proibido, feitiçaria, possessão demoníaca do século XVIII e a paixão de um bispo pela jovem possessa. Mas tudo isso foi em vão. Acordava, vestia-me de algumas palavras, calçava outras, mas confesso, esvaziava os bolsos das emoções mais íntimas, mais ínfimas e caía prostrado, abatido, numa espécie de febre alucinatória. Os verbos, sempre eles, ou Ele, pois dizem que no início era o Verbo, faziam-me carne e, assim, deambulava por entre as alamedas de frases inconstantes. Se insistia na poesia, então o descalabro era pior: não achava uma rima rica, um ritmo decassílabo, ou pior, se insistisse nos sonetos eles não achavam a estrofe seguinte. Angustiado a mais não poder quis matar-me. Tentei furar meu olho com uma vírgula, mas ela me impediu transformando-se ligeiramente em reticências... Pulei do alto de um ponto de exclamação, mas ele inteligentemente inclinou-se num travessão / e acabei escorregando como um clown ladeira abaixo pelo meu próprio ego. Quis fazer do ponto de interrogação um obstáculo permanente para minhas dúvidas, mas ele, com escárnio em seus olhos, metamorfoseou-se em aspas e passei a citar alucinadamente meus autores preferidos, meu filmes prediletos. Solfejava algumas notas musicais e caminhava inconcluso entre o allegro ma non tropo e o vivace. Fui estudar ritmos diversos em busca de inspiração, mas só encontrei acordes dissonantes que desafinavam e desafiavam a minha criação.
Eu já estava ficando possesso com esta minha insuficiência para a vida quando de repente, sem mais nem porque, abriu-se um hiato entre o sujeito e o verbo. E, fiquei assim durante um longo tempo contemplando, contemplando, contemplando, quando então me dei conta que o que faltava em mim era você. Era você quem faltava se fazer carne diante do meu verbo indizível, impronunciável e intraduzível. Retirei toda a força dos meus últimos estertores e já quase sem respirar gritei aos quatro ventos pelo seu nome. Foi então que após um período demasiado longo você surgiu. Não-toda, é verdade, mas misteriosamente bela em seu interior para me trazer novamente a palavra paixão.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Godofredo em teoria / um conto



Godofredo em teoria

Para Marianna Soares

O carteiro carrega nas costas um mundo de palavras, todas elas, seja em que língua for, o peso é sempre o mesmo e a tradução é uma só: esperança. ( do livro, A última palavra)

Godofredo era um bom carteiro, aliás, um homem bom. Tinha duas coisas das quais muito se orgulhava. Uma penca de filhos e uma penca de cartas que ele distribuía como uma árvore distribui suas folhas no outono. Deixava cair cada envelope, cada pacote, cada misteriosa encomenda diretamente nas mãos dos destinatários. Não gostava das caixas de correios, pois as julgava frias. Pensava em quem havia escrito cada carta e a saudade do encontro ali depositada. Mãos velhas de tanto capinar, mãos jovens de tanto se masturbar, mãos trêmulas necessitando se amparar e outras solitariamente desgarradas precisando se entrelaçar.

Com apenas o segundo grau completo - o que era exigido por profissão – Godofredo, se não tinha a instrução necessária para ler muitos livros, sabia da importância das palavras na vida de cada um. Sabia também que ele era o último elo que faltava na corrente da memória das distâncias intransponíveis. Via com uma lucidez espantosa o rumo das vidas percorrerem nas suas costas o fardo do perdão, a alegria do reencontro, a tristeza de uma eterna despedida, a possibilidade de um novo emprego, o rito sumário da demissão indesejada, a convocação para uma assembléia, a mala-direta comercial, a convocação sempre incômoda do dentista, a carta de amor perfumada e o telegrama aflito do ciúme doentio da paixão: ‘Estou muito mal sem você. Preciso te ver. Urgente’.

Aconteceu certa vez de entregar mais uma carta para D. Clara, uma mulher dos seus quarenta e poucos anos (Godofredo não era muito bom em correlacionar a fisionomia com a idade). Na verdade, D. Clarabóia do Brasil Teixeira. Achava engraçado aquele nome. Uma Clarabóia para o Brasil. E sorria caminhando, apertando os passos com seus sapatos corroídos pelo asfalto quente ou pela chuva impiedosa. Sempre andando para chegar a tempo ao esperado destino. Deveria, segundo seus cálculos, ser a décima terceira carta. “Número da sorte dona. É a décima terceira carta do Sr. Renato para a senhora”, disse o encabulado God, que quase nunca puxava assunto com as pessoas para não parecer intrometido ou descomposturado, conforme ele mesmo gostava de dizer. Foi então que ele ouviu pela primeira vez a voz que correspondia àquela destinatária. “Ele só vive em teoria. Promete, promete, mas não cumpre nunca o que escreve.” Godofredo sorriu agradecido sem saber o que dizer ou o que contrapor para continuar o assunto. Ajeitou o boné azul com a bandeira do Brasil na cabeça, arremessou a pesada mochila amarela com o restante das cartas para as costas, e ficou só com a metade da frase: ‘ele vive em teoria’. É bem verdade que a gente só ouve o que quer, mas God, por educação e respeito hierárquico, não quis ouvir o resto. Achou sonoro aquele ‘viver em teoria’ e percebeu que aquelas palavras traduziam de maneira formidável a vida que ele levava. Se ele levava cartas, papéis escritos por inúmeras pessoas para tantas outras inalcançáveis, ele deduziu que também levava a vida em teoria. Sorriu encabulado, agradeceu a frase que ela parecia ter-lhe destinado por encomenda. Achou estranho por que em geral ele não era o destinatário, mas o meio caminho, a ponte-levadiça, o pombo-correio, o fiel mensageiro, o arauto entre a mão por dizer e o coração por escutar.

Foi a partir deste dia que as coisas começaram a andar um pouco estranhas para o carteiro. Botou na cabeça que queria ser uma palavra. Qual? Não importava. Achou tão bonito aquilo de se levar uma vida em teoria, embora sua interpretação não estivesse lá bem de acordo com a D. Clarabóia, mas para ele que havia se agarrado como um marisco à rocha, só a primeira parte da frase deveria ser levada a sério. No fundo, só aquela vida em teoria importava. Achava assim um sentido que faltava à sua vida. Era um bom homem, como já disse, mas cumpria o seu destino, como Isaac diante da adaga na mão impiedosa do pai. Caravaggio que o diga! Aquela frase havia revelado uma epifania em sua vida que ele iria doravante tratar de lavrá-la como um bom ourives faz diante do seu tesouro.

Queria ser uma palavra. Já se disse. Mas, a pergunta insistia. Qual? Não nele, mas em mim. Ele não estava preocupado com qual palavra, mas simplesmente A palavra. E qualquer que fosse a palavra ele já ficaria satisfeito, pois estaria se transformando em teoria. Era fácil, muito simples até. Mais simples do que a simplicidade humilde com a qual tinha vivido até então: a profissão de carteiro, o cuidado com os inúmeros filhos – isso sabia fazer bem, jactava-se orgulhoso - da mulher iletrada, mas mãe zelosa, do culto aos domingos na igreja vizinha da sua casa. Sua mulher ia sempre ao culto do pastor Antenor Diógenes, mas ele mostrava-se zeloso por tanta coisa por fazer que nunca quis se ater à demanda divinatória. Até que um dia, por opção ou osmose, acabou cedendo aos louvores e pulou o muro da incredulidade.

Mas agora era diferente. E qual era esta magnífica diferença? É que a escolha era genuinamente dele. Sem influência dogmática ou ritos impostos. Sentia-se feliz nesta liberdade de poder escolher. E sem saber muito bem o porquê, esta idéia de querer ser uma palavra era a coisa mais sublime que poderia fazer na sua vida. Nada poderia atrapalhá-lo ou mesmo detê-lo. Na verdade, não havia razões explícitas para tal, mas dentro do seu peito borbulhava uma espécie de comichão ou êxtase como se estivesse prestes a alcançar o Nirvana. Já fazia muito tempo que não estudava, mas com algum esforço e pesquisa num caderno de português de um dos meninos, reencontrou o sentido quase exato para a palavra teoria. Anotou numa folha avulsa que arrancou de um dos cadernos das crianças: O substantivo theoría (achou que o filho tinha copiado errado a palavra. Tinha um agá ali de intrometido, pensou. Precisava mais tarde chamar a atenção do menino na hora da cópia. Escreveu ao lado da página: corrigir o Aristeu no ditado. Teoria e não theoria.) significa ação de contemplar, olhar, examinar, especular e também vista ou espetáculo. Também pode ser entendido como forma de pensar e entender algum fenômeno a partir da observação. Conjunto sistemático de opiniões, regras ou leis. Escreveu também. Construção imaginária; utopia, sonho, fantasia.

É isto! Exclamou feliz. Utopia, sonho, fantasia. Viver a vida em teoria é viver a palavra sonhada. Contemplação, olhar, espetáculo. Mas é tudo isso que eu vivo cotidianamente! Gritou exultante. Só não sabia que era isso. Vou virar mesmo uma palavra. Cantou exultante. Uma palavra contemplada, uma palavra-espetáculo, uma palavra olhada. E passou a se dedicar a cada minuto do seu trabalho em ser uma palavra. A cada passo que dava queria ser uma palavra difrente: nos primeiros dias quis ser uma palavra azul, depois uma palavra luz, depois uma palavra jardim, depois uma palavra surda, depois a palavra vampiro. E teve medo. Mas depois, as palavras iam-lhe e vinham-lhe numa velocidade espantosa sem que ele pudesse retê-las ou abandoná-las. Gostava disso, gostava principalmente das palavras que não compreendia de imediato, mas que depois iam-lhe abrindo os poros assim como as lágrimas da chuva cavavam sulcos na terra ressequida. O barulho que estas lhe faziam parecia infernal, mas à medida que as compreendia eram os mais lindos sons. Foi assim que ouviu pela primeira vez a palavra ‘Celta’ e um som extremamente melodioso invadiu-lhe o passado, de forma que o atavismo das experiências esquecidas retornaram como se estivessem adormecidas há séculos. Agora lhe eram extremamente familiares e ele falava e compreendia uma profusão de línguas.

Godofredo andava diferente. Quem o olhava passar percebia que ele estava contínuamente falando sozinho. Andava com um olhar distante, mas com um inseparável sorriso nos lábios. Foi no final de uma tarde de verão, num dia de extremo calor, enquanto Godofredo voltava para casa, que Natanael, o açougueiro, deu o grito: gente! Venham ver! A sombra da perna do Godofredo transforma-se num A quando ele anda. Vejam só! É quando ele abre as pernas. Sua sombra é um A. Gritava espantado e surpreso.

Pois bem, se a primeira letra foi o alfa, antes de se chegar ao ômega, a sombra de Godofredo denunciava no chão uma infinidade de outras letras, que se juntavam em palavras para se desfazerem na próxima passada. Algumas crianças corriam divertidas ao seu lado tentando adivinhar a palavra que ele ia formar. Alguns faziam cantigas das palavras, os poetas rimavam poesias, os amantes recolhiam entusiasmados pequenos montículos da palavra paixão, os mal-educados abaixavam-se para pegar os palavrões e lançar contra o próprio God, que sem se importar continuava seu caminho coberto por outras palavras que lhe protegiam dos arranhões. Caminhava enquanto pensava cada vez mais crédulo que elas eram uma parte do seu corpo, assim como suas mãos eram apenas a continuação dos seus braços. As palavras continuavam através do seu corpo tornando-o cada vez mais infinito. Definitivo.

A última vez que viram o Godofredo, se é que ainda se pode dar este nome a ele, já não tinha mais nada que se assemelhasse a um corpo. Era uma montanha de letras que se acotovelavam umas por cima das outras, cada uma querendo fazer mais e mais parte daquele ser. E, se por ventura uma caía ao chão, logo era substituída por mais duas, dez ou mesmo trinta. A velocidade com que isso ocorria era espantosa. Parece que agora ele estava virando uma página. Talvez já pudesse até mesmo ser uma carta de amor ou um livro por fazer...

Carlos Eduardo Leal