Outras Palavras, este campo do blog aonde outros textos fazem suas incursões, tramas e reincursões, como é o caso de Michelle, que já esteve por aqui em outras ocasiões. Atriz, escritora, doutoranda em teatro na UNIRIO, estuda novas mídias na contemporaneidade a partir dos textos de Samuel Beckett. Colabora regularmente na revista Questão de Crítica e no site Almanaque Virtual Cultura em Movimento.
Tempo da delicadeza
Há uma música do Chico Buarque chamada “Todo o sentimento”, mas pra mim, ela se chama mesmo “Tempo da delicadeza”. Há um trecho que diz: “Depois de te perder, te encontro, com certeza, talvez num tempo da delicadeza, onde não diremos nada; nada aconteceu”. Dou pause na música do Chico para discutir um tema delicado, mas fundamental: a desmistificação do amor como o mais nobre, virtuoso e intocável dos sentimentos, raramente associado a aspectos negativos. Mas, não é só isso. Proponho uma reavaliação do status quo do amor – a noção romântica de “alma gêmea”, de que “o outro é o meu complemento”, “o outro é a minha metade”, “o outro é o meu oposto”, “tem o que eu não tenho”, “só ele (o outro) pode me dar o que eu não tenho”, “só ele pode ser o que eu não sou, ou não tenho coragem de ser” – frases que não passam de chavões que confirmam a idéia de que “é impossível ser feliz sozinho”, como dizia o saudoso Tom Jobim. Como letra de música e poesia, o amor é tema exaustivamente cantado por grandes poetas da humanidade; na vida de carne e osso, o amor determinadas vezes é uma enorme furada. Furada tão grande que acaba por revelar o “buraco” indicador de nossa sagrada e cantada incompletude. “Valei-me Deus, é o fim do nosso amor, perdoa, por favor, eu sei que o erro aconteceu, mas não sei o que fez tudo mudar de vez, onde foi que eu errei, eu só sei que amei, que amei, que amei, que amei...”, canta Djavan em “Flor de Lis”. Há pessoas que acreditam que o “buraco” é próprio da natureza humana e que só se pode ser feliz, resolvendo essa situação por meio do tão desejado e sonhado encontro amoroso. O amor vira a única saída do buraco. Esquecem-se de que inúmeras vezes, o amor é a porta de entrada “no buraco”. O “buraco”, para a teoria psicanalítica, seria uma “espécie de cicatriz umbilical psíquica”, um “resíduo derivado da traumática vivência do ato de nascer”. A pessoa se sente como metade, mas na verdade, é inteira. A insegurança pessoal camuflando-se em nome do amor transforma-se assim num argumento que outorga o direito de um parceiro sobre o outro, o direito de subjugá-lo, de impor limites ao livre exercício da individualidade do outro. Mas há outras possibilidades para o amor. Uma delas é chamada de “companheirismo”. Se o amor (romântico) reforça a ânsia de fusão com o outro, o companheirismo corresponde a uma sensação de aconchego entre pessoas que se vêem inteiras, ainda que se sintam incompletas. É aqui que dou play e volto ao trecho da música do Chico, “Tempo da delicadeza”: “Depois de te perder, te encontro, com certeza, talvez num tempo da delicadeza, onde não diremos nada; nada aconteceu”. Esse tempo é o instante, o instante-já (“Agora é o tempo inchado até os limites”, escreveu Clarice). Quero um tempo de me perder e de (te) perder, um tempo de me encontrar e (te) encontrar depois, um tempo “além do tempo”, um tempo de olhar para as coisas insignificantes (“Pessoas pertencidas de abandono me comovem: tanto quanto as soberbas coisas ínfimas”, disse certa vez o poeta Manoel de Barros), um tempo de não dizer nada, tempo de nada acontecer (é aí que tudo acontece), tempo de falhar, tempo de tentar, tempo de falhar de novo, tempo de mais fraquezas que certezas, mais errâncias que constâncias, mais inteiros que metades, mais companheiros que lunáticos fanáticos fantásticos. Tempo da delicadeza. “Tempo, tempo, tempo, tempo, entro num acordo contigo, tempo, tempo, tempo, tempo...”. Mas essa já é outra música, outra história.
Michelle Nicié