sexta-feira, 31 de julho de 2009

Outras Palavras / Tempo da Delicadeza

Outras Palavras, este campo do blog aonde outros textos fazem suas incursões, tramas e reincursões, como é o caso de Michelle, que já esteve por aqui em outras ocasiões. Atriz, escritora, doutoranda em teatro na UNIRIO, estuda novas mídias na contemporaneidade a partir dos textos de Samuel Beckett. Colabora regularmente na revista Questão de Crítica e no site Almanaque Virtual Cultura em Movimento.

Você também possui um texto e quer publicar aqui? Envie para: celeal01@gmail.com
Carlos Eduardo Leal

Tempo da delicadeza

Há uma música do Chico Buarque chamada “Todo o sentimento”, mas pra mim, ela se chama mesmo “Tempo da delicadeza”. Há um trecho que diz: “Depois de te perder, te encontro, com certeza, talvez num tempo da delicadeza, onde não diremos nada; nada aconteceu”. Dou pause na música do Chico para discutir um tema delicado, mas fundamental: a desmistificação do amor como o mais nobre, virtuoso e intocável dos sentimentos, raramente associado a aspectos negativos. Mas, não é só isso. Proponho uma reavaliação do status quo do amor – a noção romântica de “alma gêmea”, de que “o outro é o meu complemento”, “o outro é a minha metade”, “o outro é o meu oposto”, “tem o que eu não tenho”, “só ele (o outro) pode me dar o que eu não tenho”, “só ele pode ser o que eu não sou, ou não tenho coragem de ser” – frases que não passam de chavões que confirmam a idéia de que “é impossível ser feliz sozinho”, como dizia o saudoso Tom Jobim. Como letra de música e poesia, o amor é tema exaustivamente cantado por grandes poetas da humanidade; na vida de carne e osso, o amor determinadas vezes é uma enorme furada. Furada tão grande que acaba por revelar o “buraco” indicador de nossa sagrada e cantada incompletude. “Valei-me Deus, é o fim do nosso amor, perdoa, por favor, eu sei que o erro aconteceu, mas não sei o que fez tudo mudar de vez, onde foi que eu errei, eu só sei que amei, que amei, que amei, que amei...”, canta Djavan em “Flor de Lis”. Há pessoas que acreditam que o “buraco” é próprio da natureza humana e que só se pode ser feliz, resolvendo essa situação por meio do tão desejado e sonhado encontro amoroso. O amor vira a única saída do buraco. Esquecem-se de que inúmeras vezes, o amor é a porta de entrada “no buraco”. O “buraco”, para a teoria psicanalítica, seria uma “espécie de cicatriz umbilical psíquica”, um “resíduo derivado da traumática vivência do ato de nascer”. A pessoa se sente como metade, mas na verdade, é inteira. A insegurança pessoal camuflando-se em nome do amor transforma-se assim num argumento que outorga o direito de um parceiro sobre o outro, o direito de subjugá-lo, de impor limites ao livre exercício da individualidade do outro. Mas há outras possibilidades para o amor. Uma delas é chamada de “companheirismo”. Se o amor (romântico) reforça a ânsia de fusão com o outro, o companheirismo corresponde a uma sensação de aconchego entre pessoas que se vêem inteiras, ainda que se sintam incompletas. É aqui que dou play e volto ao trecho da música do Chico, “Tempo da delicadeza”: “Depois de te perder, te encontro, com certeza, talvez num tempo da delicadeza, onde não diremos nada; nada aconteceu”. Esse tempo é o instante, o instante-já (“Agora é o tempo inchado até os limites”, escreveu Clarice). Quero um tempo de me perder e de (te) perder, um tempo de me encontrar e (te) encontrar depois, um tempo “além do tempo”, um tempo de olhar para as coisas insignificantes (“Pessoas pertencidas de abandono me comovem: tanto quanto as soberbas coisas ínfimas”, disse certa vez o poeta Manoel de Barros), um tempo de não dizer nada, tempo de nada acontecer (é aí que tudo acontece), tempo de falhar, tempo de tentar, tempo de falhar de novo, tempo de mais fraquezas que certezas, mais errâncias que constâncias, mais inteiros que metades, mais companheiros que lunáticos fanáticos fantásticos. Tempo da delicadeza. “Tempo, tempo, tempo, tempo, entro num acordo contigo, tempo, tempo, tempo, tempo...”. Mas essa já é outra música, outra história.

Michelle Nicié

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Van Gogh em mim


Van Gogh sempre me impressionou. Em minha infância, na casa onde morava, as paredes eram decoradas com enormes reproduções das telas de Van Gogh. Não sei como foram parar lá. Nunca perguntei quem as comprou. No meu quarto havia uma tela enorme. A tela (exatamente esta da imagem) mostra casas distorcidas, cores que oscilam entre o famoso amarelo (nas gramíneas), o azul e tons de verde. Uma rua torta e árvores igualmente tortas descaminham por entre as casas. Viajava neste quadro. Enxergava bichos e alguns outros animais que só existiam na minha fantasia. Ou não? Descubram vocês mesmos: na nuvem no alto à esquerda um homem de fraque empurrando um carrinho que tem uma carinha. Ainda na nuvem ao centro há um homem com uma espécie de cachimbo perto do nariz e mais abaixo um animal. Descubram um dromedário, duas cobras, bichinhos verdes, etc.
Eu era criança e enxergava isto tudo e, no silêncio do meu quarto, no silêncio das minhas ruidosas fantasias, inventava histórias e fugia para dentro do quadro, assim como Kurosawa fez em seu filme "sonhos". Com certeza vem daí a minha paixão por Van Gogh e os impressionistas. Porém, Van Gogh foi mais do que um impressionista. Ele retratou os sofrimentos da alma humana pintando a natureza. Fez coincidir o olhar patológico com a suavidade de suas paisagens na Holanda ou na França. Em suas correspondências com seu irmão Theo ele pintava com palavras as cenas que ele via quando morou na Inglaterra. Pintar com palavras não é para qualquer um. Eu mesmo gostaria de fazê-lo, mas talvez me falte a loucura necessária ou o olhar do gênio holandês. Assim, procuro aqui apenas relembrar uma parte da minha infância sonhadora através de Van Gogh.
Na vida, às vezes a gente tem algumas felicidades. A minha foi, por mais de uma ocasião, estar em Amsterdã e passar horas sem fim dentro do Museum Van Gogh. O retorno à infância era um prazer inevitável. E ali, eu não queria evitar nada que me reconciliasse com minhas fantasias.
Em meus ensaios como pintor, recriei livremente algumas telas de Van Gogh. Deixei o pincel correr solto com as tintas coloridas das minhas fantasias. Há um que eu gostei do resultado. É o "quarto de dormir" do próprio Van Gogh. Numa carta a Theo ele diz a respeito deste quadro que eliminou as sombras para que a obra parecesse uma ilustração japonesa (ele adorava quadros japoneses e em seu museu tem uma ala com a sua coleção) e que as cores deveriam dar um ar de "tranquilidade". Coloquei-o no meu consultório.
Nesta semana ganhei de uma amiga um lindo livro de arte sobre Van Gogh e, com ele, tenho revisitado meus atavismos e minhas fantasias oníricas de criança. Este texto, sobretudo, é um agradecimento a ela.

sábado, 18 de julho de 2009

Um peixe chamado João


Ele era um peixe chamado João. João não queria nada da sua vida úmida. Nadava simplesmente. E esta resolução em nadar estremecia seu pai Durvalino. Peixe grande, destes que se diz de quem tira a sorte maior na vida. Coisa de robalo, ou até mais, um cherne como o grande Chico, talvez mesmo um Marlin Azul. Durvalino era todo prosa com sua prole de oitocentos e trinta e três filhotes. Número cabalístico, dizia. "Com um cardume destes sou capaz de enfrentar até tubarão branco", vangloriava-se. Era um verdadeiro cardume prateado com listras azuis e amareladas para ninguém botar defeito, ou quase. Havia o João, ou quase. Porque o João é que não havia. João era meio moleque. Sempre foi. Em suas profundidades mais abissais ficava dias sem dar notícias. Enroscava-se em perigosas redes e saía com a maior facilidade, alimentava-se de pequenos moluscos que encontrava nas tocas das costas dos recifes do norte do Brasil quando todos estavam de férias pelos costados do sudeste.
Mas o tempo passou e João também cresceu. Cresceu muito. Imaginem um peixe grande. Imaginaram? Maior. Impossível? Mentira? Pois digo que João era muito maior do que uma baleia. Sua cabeça mergulhava nos Açores e sua cauda espirrava água na Jamaica. Certa vez tentou subir o rio Amazonas. Entalou em Marajó. Precisou de mais de dezoito dias de maré cheia e muita pororoca para poder recuar e retornar ao oceano. Enquanto isso, a população ribeirinha fazia festa e pensava logo na fartura em retalhar o João. Sonhavam os moquequeiros, sonhavam as frigideiras, sonhavam mais ainda os assíduos frequentadores do bar do Seu Lionel, que era campeão no caldinho de peixe com cachaça embelezada de cupuaçu. Vieram moças formosas sonhando com pentes de osso do pobre João e vieram também todos os padres, pastores, mães, pais e tias de santo para rezarem pela alma do aquático. Aquela miscelânia religiosa, aquele sincretismo religioso oportunista era de enfurecer qualquer cristão, mas tudo, diziam os religiosos, era feito pela boa alma do peixão. Afinal de contas, esta história de multiplicação dos peixes estava ali bem defronte deles através de uma única espécie. Milagre! Milagre! Milagre! Gritavam os pastores mais exaltados. Santo! Santo! Santo! Clamavam os diáconos ajoelhados. O coral gospel da cidade improvisou um hino ao peixão: "Aqui me tens oh, Salvador/ Adorna a minh'alma com seu louvor/ Retira este peixe dos mares/ Que eu me ajoelharei em seus altares."
E João que nunca quis nada, apenas nadar (era seu verbo predileto), importunava-se com estes roedores humanos que queriam catequizar sua cauda para melhor abocanhar-lhe as entranhas.
E foi por volta do vigésimo dia que ele conseguiu iniciar seu movimento de retorno ao bom e velho oceano. Primeiro mexeu a cabeça e a onda produzida fez os plantadores de coca no Peru pensarem que era a divisão anti-drogas dos EUA que estavam fazendo outra investida. Mario Vargas Llosa, ainda de pijamas, chegou até a varanda de sua casa de campo para ver o que estava acontecendo. E pensou logo em escrever um livro que se chamaria,"La puta madre del pez". Quando João mexeu finalmente a cauda, a água transbordou até o Pantanal e fez com que Manoel de Barros acorresse aos seus caderninhos para anotar: "beiral de água come mosca e eu, engulo rios."
O mal estava feito e João tornava-se cada dia mais popular, pois ele não parava de crescer. As redes de televisão do Japão excitavam-se arregalando os olhos para documentarem o maior sashimi que eles já haviam visto. Diante dele, Celacanto era um Giraya amedrontado e, Godzila, apenas uma lagartixa assanhada. João não tinha mais como se esconder, pois até as águas dos oceanos parece que tinham ficado como uma bacia onde se lavam os bebês com mais de um ano por insistência da falta de banheira.
E de tanto lhe importunarem e quererem fazer filmes hollywoodianos com ele (Tom Cruise tentou filmar Missão Impossível 6, mas desistiu, Steven Spielberg quis fazer um misto de ET com tubarão, mas os efeitos especiais de George Lucas nunca eram suficientes para uma única tomada de cena) que João resolveu iniciar uma verdadeira revolução. Pela primeira vez, o mundo testemunhava horrorizado um peixe autofágico. João que nunca quis nada (lembram?), iniciou um processo masoquista de autoflagelamento só comparado aos grandes mártires da história. Jogava-se de cabeça contra os arrecifes, mergulhava até as regiões abissais e ficava só com a cauda para o lado de fora por dias a fio. Era um espetáculo de dar dó.
E foi num destes espasmos nada filantrópicos que aconteceu. Aconteceu bem diante da vista de todo o mundo, inclusive de seu pai Durvalino. João ia voltando velozmente do fundo do oceano em diração à superfície quando ele ultrapassou as nuvens. E foi subindo, subindo, subindo. Espiralando em sua grandeza prateada. Todos batiam palmas estupefatos. Virou um cometa e sua cauda ainda pode ser vista em noites de lua minguante.
Dizem que deixou mais de um trilhão de herdeiros. Os romeiros do alto amazonas já preparam uma nova caravana até a santa foz, agora também denominada Estuário ou Santuário do João.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Casulo



Ilana foi pouco a pouco tirando a roupa. Ela já não era mais uma menina, mas ainda usava a mesma roupa que sua mãe lhe dera no natal anterior. Não, pobre também não era. Era mais por superstição, dizia, por ir à missa com o mesmo vestido verde claro com gola branca. Ilana continuou tirando a roupa. Não, não eram movimentos lentos, mas também igualmente não eram bruscos. Eram sentidos. Havia sentimento em seu movimento. E sentir, sentir-se, era o que ela mais queria naquele momento. Deveria eternizá-lo? Só o último ato daquele movimento solo dir-lhe-ia o saber sobre o seu ato. Era um ato preciso, precioso. Não, de modo nenhum era fácil, mas ela estava disposta a continuar a desfazer-se daquela roupa. Não media movimentos. Não. Chegou a pensar nisto, mas recuou dele com vigor. Tudo menos isto. Tudo menos recuar desta hora tão espetacularmente misteriosa. Desagasalhar-se era um movimento sutil, subjetivo, particular e, extremamente íntimo. E ela estava só em sua intimidade. Ilana estava excitada e esta excitação era o alcance da sua felicidade. Ajeitou os cabelos com as pontas dos dedos. Jogou-os para trás num movimento que tantas e tantas vezes fizera. Mas, agora, ela estava em sua magia particular. Cada fragmento de si, de sua pele, de seus contornos, de seus seios, de suas coxas, era o infinito do universo salpicado em seu corpo. E ela adornava seu corpo com seu olhar lânguido de desejos. A cada movimento, seu corpo se iluminava como um vaga-lume na escuridão da sua vida anterior. Ganhava luz própria como uma lanterna chinesa a revelar os ideogramas milenarmente ocultos. Ilana continuava seu delicado movimento. Delicado, porém preciso. Preciso e determinado. Havia se determinado a cumprir mais do que um simples ritual. Era um rito de passagem. Era uma despedida da sua infância. Movimento outonal. Desfolhava-se de seus atavismos.
Ilana agora acabara de retirar a última peça de roupa que sua mãe havia sobreposto à sua pele.
Mas, misteriosamente ela não estava nua. Ilana vestia a roupa com a qual deveria caminhar sua própria vida na inconstância pulsante dos seus erros e acertos. Viva, delicadamente viva, como a vida pede, exige mesmo nestes momentos. Delicadeza consigo própria. Ela estava encharcada de si e, sua felicidade, escorria-lhe perna abaixo. Havia acabado de sair do casulo: a prisão de seda construída pela sua mãe. Voou na tranquilidade dos seus próprios ventos.

Exodus

Sabia que atravessar aquela porta seria como subir no patamar mais alto para o precipício. Não havia trancas. Na verdade, ela só estava encostada e eu sabia disso. Mas, não podia mais olhar para trás. Quantos personagens ao longo da história haviam caído na tentação - mesmo que por um brevíssimo instante -, de ter dado uma pequena olhada para trás e ficaram por ali mesmo: suspensos, hirtos, presos, emparedados, convertidos em estátuas de sal, petrificados. Mas a tentação maior era seguir em frente rumo ao desconhecido. Não atravessar aquela porta era ficar no caos de sempre. Não, não era fuga. Era uma invenção. Recriar-me era preciso e suficiente. A invenção de uma liberdade que na verdade nunca existira. E eu estava decidido a me recriar. Era uma porta muito antiga, prensada em ferro duplo, densa e dotada de grave melancolia como deveriam ser todas as portas como aquela.

A primeira luz que veio jorrou sobre meus olhos como azeite fervendo. E só havia uma fresta. Mas já era muito para aqueles tempos. Tateei às cegas por mim mesmo, mas só havia pedaços. Núcleos espatifados quase irreconhecíveis, dobras adiposas ostentatórias de um Vesúvio adormecido, olhos escarlates tristemente longínquos e fungos esverdeados espalhados por algumas superfícies sem sol era o que me compunha. Uma praia de areias ainda virgens sob um manto de pedras negras, angulares, inóspitas como se tivessem saído do deserto dos Tártaros, milenares, que desafiavam as intempéries da lua sobre o mar. Era como se desde sempre eu soubesse que por detrás do mar estava a lua para envergá-lo, dobrá-lo, sorvê-lo em grandes goles como a gula do pecado maior. Como podia, pensava, ela tão pequenina, tão distante, às vezes nova, noutras cheia, minguante ou mesmo crescente, ter a magnitude da força de soerguer o mar como se fosse a água dentro de uma bacia onde se lavam as roupas e os excessos?

Para existir era necessário um pouco de dignidade, mesmo que fosse enganosa. Eu ainda não estava disposto a morrer. Não sem falsear mais uma ou duas vezes. Aliás, neste assunto eu era extremamente versado. Era um prestidigitador que fazia das ilusões um mote para fingir a vida. Minha existência podia ser dividida de tempos em tempos como uma espécie de sazonalidade autodidata. Fingida sim, mas a-verdade-por-vir foi a vida quem me ensinou. Ou me transfigurou. Julguem vocês como quiserem por que eu estou disposto a contar-lhes algumas destas verdades. Talvez toda a verdade, pois já não me importo com os tribunais perversos pelos quais passei ao longo da vida e não temo mais o julgamento e a santa inquisição que vocês, personagens hipócritas, por ventura venham me apontar o indicador sobre a minha história. Com isso quero dizer que não vou poupar-lhes um côvado de tudo o que for preciso para regurgitar meus escárnios e meus verbos mais sangrentos, e isso se aproxima de maneira muito estreita e fidedigna da realidade vivida. Que esta realidade vivida seja ilusória, fingida, é a apenas o látego que separa a ficção do choro incontido, raivoso que denuncia os sulcos, sepulcros, que vão se perdendo no estuário da memória. Assim, resgato-lhes senão a memória vivida, ao menos a vida inventada no cotidiano.


...trecho do meu próximo romance. Aguardem!

Blind Date

Queria escrever uma palavra bonita.
Bonita era a palavra que eu queria escrever.
E a escrevi há tanto tempo na minha pele
Que nem sei mais a sua cor.
Tornei a escrevê-la num dia de sol em que pensei:
ah, agora vais aparecer bem defronte ao meu coração.
Mas, vertiginosa ilusão!
Bonita era apenas o nome da minha dor.

BH - 14/07/09

Coração

"Não é fácil ser coração.
É da sua natureza não descansar.
Coração só dorme uma vez.
Definitivamente."

Anônimo, mas não Veneziano.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

D. Carola e a Flip

D. Carola. Este é o seu nome. Encontrei-a perto da minha pousada em Paraty. Tive tempo de conversar com ela. Ela, ela tinha "todo o tempo do mundo" e o mundo já não lhe importava tanto. Só estranhava "tantos carros, tantas pessoas assim como você". Não quis perguntar o que era aquele "assim como você", não quis ser invasivo e já bastava a foto (concedida com sua autorização) para aquela invasão bárbara. A literatura invadira a sua cidade e ela foi tornando-se invisível. As pessoas passavam rápido por D. Carola e ela naquele passinho singelo, sem pressa para a vida, como se a vida já tivesse lhe dado o suficiente. Eu não lhe daria mais nada a não ser, talvez, o meu sorriso e uns "dois dedos de prosa". Engraçado, todos ali falando de suas prosas, de seus versos e ninguém, absolutamente ninguém afim de prosa com D. Carola. Todos tão letrados, todos tão internacionalmente vertidos em Proust, Dostoiévski, ou dos vivos tão distantes Mario Bellatin, Gay Talese, Simon Schama que estava tão (todos) preocupado (preocupados) com O futuro da América e seu Barack Obama. Mas quem se interessava pelo futuro das histórias que D. Carola tinha para contar? Ela em seu passo lento, barroco, sorria cumprimentando a todos agarrada ainda em seu passado de reverências simples e cumprimentos formais.
Tive vontade de lhe dizer: é a senhora D. Carola que é nosso passado vivo no presente e o meu presente para o dia de hoje. Tive vontade de lhe dizer muitas outras coisas, mas ela apenas me fitava com seus olhos que me enganavam tristes, mas apenas estavam esgotados em seu ensimesmamento. Tive vontade de lhe dizer dos muitos livros que nos circundavam naqueles dias, da festa da literatura neste Brasil tão pobre de leitores, mas descobri a tempo que ela era o meu Brasil iletrado, que ela, em sua grandeza de sua roupinha simples era a beleza que faltava naquelas páginas de todas aquelas pilhas de livros.
Deixei-a, mas ficou em mim a sua sombra que subia nos meus degraus inacabados. Um vazio. Tive vergonha de minha pequenez, eu que me achava muito porque ia entrevistar um escritor francês, eu que dali a alguns minutos com certeza estaria autografando meu livro.
Ela seguiu com seus passinhos miúdos não sei para onde. Eu segui meu rumo agora com a certeza de que meus passos eram muito menores do que os dela. Não consegui olhar para trás. Certamente viraria uma estátua de sal, ou, quem sabe, ficaria cego tal como Orfeu. Eu havia experimentado o gosto do pecado. O pecado de ver sua invisibilidade. Ela havia aberto em mim um ruído impossível de apagar. O impacto do encontro com o rudimentar, com a simplicidade, me fazia enxergar minhas cegueiras atávicas sobre o amor e sobre a vida. Agora eu pecava com uma força ainda maior do que todas as potestades. Eu era cúmplice das injustiças com as coisas simples e com as pessoas que a borracha da história apagava sem piedade. Agora eu sabia menos de mim, mas estava aberto para o mais. Mas Artaud não estava ali para me ajudar. Pobre Antonin, talvez ele também não soubesse e, por isso, tenha enlouquecido. Naquele instante, teria sido melhor enlouquecer? Não, não e não. Mil vezes não. Antes o encontro com a dor da verdade do que a fuga na loucura.
Assim, pude apenas constatar que D. Carola era a história viva que não coube em nenhum daqueles grandiosos livros, e eu, apenas mais um personagem em sua vida que ainda não havia sido sequer narrada.