sábado, 30 de maio de 2009
Além de mim...
domingo, 24 de maio de 2009
Bumerangue
Bumerangue
Entre as omoplatas, via-se-lhe um naco pontiagudo, disforme, protuberância nodosa rosa-via-lacteo perfumado de cera de abelhas de eucalipto vergado ao vento sul. Fez-se mel e deixou escorrer pelo dorso nu com a certeza da esperança de que as antigas asas ressuscitassem o anjo adormecido. Outros vieram ver o antigo procedimento testado com sucesso desde antes da primeira Queda. Uma revoada em turbilhão anoiteceu sobre o decaído. Neste mesmo átimo do instante inaugural, um hálito frio resvalou como uma andorinha resvala subitamente contra a corrente de vento espiralando poeiras cósmicas translúcidas com leves indicações de um alaranjado sobre azul carmim. A partir de este estalar de línguas, alguns animais passaram a existir. Ainda não havia nomes prometidos para eles, mas o haver descortinava-se como se fosse a única coisa a se fazer até então. Nasceram porque era imperioso desvencilhar-se das penas encharcadas de promessas sem função. Então, melhor que batessem asas numa direção qualquer a ficarem enterrados sob as palavras ainda não proferidas. Lançaram-se num vácuo de ideias, cogitus interruptus, dir-se-ia milhões de anos avante àquele átomo de tempo primevo. Sem a proteção das palavras ainda não nascidas, corria-se todo o risco conhecido até então: tornarem-se sombras difusas, contornos mal definidos ao cair da tarde, vulto de animal por detrás da neblina no nascer do dia ou, o que era pior, mergulho eterno na caverna da noite sem lua. Vagidos incompreensíveis soaram como se a tristeza acabasse de ter sido inaugurada, mas era só o que não tinha nome que rastejava por entre corpos com os olhos ainda não despertos. Um movimento atônito, deambulante, parecia querer sair por entre aquelas omoplatas. Regou-se-lhe novamente com uma porção devotamente maior de mel que a esta altura recendia para além de todas as fronteiras e limites conhecidos. Se ainda o voo estava sonambúlico era só porque as palavras eram poucas, voltou-se a dizer, parcas para efetuar o destino concedido. Alguns se arvoraram a tê-las antecipadamente ou imerecidamente de acordo com o desalento sentido. Desamparo veio antes de desalento – agora se sabe - e, com isso, inaugurou-se o que se acostumou a ser designado como voz sem som, olhar sem visão, mão trêmula que jamais conhecerá outra. Era o vazio rodeado por camadas inabitáveis do desconforto atópico. Perseverança foi uma palavra que veio depois, depois da sexta tentativa fracassada de produzir entre aquelas omoplatas o ressurgimento das asas-sem-queda. Tudo que sempre se fez foi lançar letras para que elas ao tropeçarem umas nas outras formassem palavras-frases que elevassem a cópula a um nível de entendimento e infinitas possibilidades: neologismo era apenas uma pequenina fração do mel derramado sobre o não nascido. Mas este foi o mel regado mais uma vez sobre aquela protuberância para que de certas mãos escorressem a novidade anunciada. Assim, lançou-se sobre os não-nomeados a razão por vir, mas as palavras escorregaram profundos sentimentos, dores da partida indesejada, privações mal solfejadas, acordes inaudíveis, traições tempestuosas como já acontecia noutras inóspitas regiões, paixões descalças de firmamento e amores-apaixonados, lúdicos na mais bela desrazão do viver. Tudo num único dia e ainda tendo a promessa anunciada de retornar com a asa àquele ser adormecido. Para sempre. Para sempre? Não se teria dito este ‘sempre’ se soubesse o que seria antecipadamente esta doença da eternidade na cabeça dos ainda não nominados. Antes dever-se-ia tê-los instruído satisfatoriamente sobre o tempo do regozijo, o tempo da dor, o tempo da saudade, o tempo da aprendizagem e o tempo incompreensível que de todos é o mais importante, pois data o tempo do amor. Disto resultou uma Babel de tangências e infinitizações nos desamparos não concedidos, mas impossíveis de evitar. Por exemplo, nunca foi possível explicar que nem sempre os opostos são contraditórios, mas muitas vezes complementares ao mel que adoça o voo de uma abelha já em desuso. Uma enorme revoada se fez e ainda não era a manhã do outro dia. Percebeu-se que as coisas deviam seguir um caminho ainda incompleto, não concedido ou não totalmente pensado. Os voos fugiam ao controle do vento, pois as asas tornavam-se mais e mais singulares seguindo o rumo do sêmen primordial. Três pequenos rios e ainda um número imperfeito de árvores e outros imprecisos animais selavam as condições para a manjedoura alimentícia do saber em curso para sempre igualmente incompleto e para sempre igualmente buscado. Era esta a ideia do temporariamente infinito que ficou para sempre incompreensível. Eternidade no presente, diz-se. Mas a protuberância entre as omoplatas não vingou asas, antes, temor sobre a sombra do futuro com os olhos embaçados sobre o passado. Secou por completo as evidências de outrora. Levantou-se com dificuldade e, pela primeira vez, deambulou satisfeito por entre outros olhos, divinamente doces, misteriosamente cativantes, enigmáticos para todo o sempre, que a cada passo retribuía-lhe femininamente, tal como um bumerangue em sua elipse, a insistência da recém-inaugurada palavra paixão.
sexta-feira, 8 de maio de 2009
Os olhos de Bia
Era uma vez uma menina que gostava de olhar pela janela da sua pequena casa. Era uma casa feita com muita imaginação e poesia. Mas não a sua janela. Ah, isso não. Ela era real como o seu vestido de nuvem azul. Mas da janela ela espiava o mundo. E não havia fronteira que pudesse deter o alcance dos seus olhos que eram um verdadeiro passaporte para o mundo. Eles eram vivos como uma abelha travessa que ziguezagueia por entre as flores desenhando um oitoinfinito. De sua janela ela via até a muralha da China, mas se alguém se admirava com este feito, Bia (ah, era este o seu nome) logo exclamava: "mas até da lua já viram a muralha da china. Não vejo vantagem nenhuma que eu consiga vê-la daqui." E Bia não parava por aí. Olhava com surpresa e admiração o Alaska gelado e se maravilhava com as focas rolando dengosas ao sol e mergulhando ligeiras sob a aurora boreal. Debruçou-se um pouco mais para ver um girassol que capturava raios solares por detrás de uma manada de búfalos na ilha de Marajó. Ficou encantada com uma ventania que dobrava bambuzais no Japão. Reverência nipônica entre humanos já tinha ouvido falar, mas entre dois elementos da natureza era a primeira vez. Riu de se debulhar em lágrimas com dois esquilos brigando por uma noz numa floresta na Irlanda. Noutro dia chorou muito ao ver um filhote de joaninha perdido da sua mãe dentro da floresta da Tailândia. E ficou igualmnte chocada ao ver uma tourada sanguinária em Madri. Disse para si mesma que nunca mais olharia naquela direção. Bia era extremamente decidida. Quando ela decidia ver alguma coisa, nada ou ninguém a impedia. Assim, nada escapava aos seus olhinhos ligeiros como qualquer outro bichinho arisco que vocês queiram pensar.
Sua mãe fechava a janela todos os dias às seis horas da tarde. Dizia que era por causa dos mosquitos. Na verdade, sua mãe Miríades, queria companhia para rezarem juntas a Ave Maria.
Certa noite Bia teve um sonho. Sonhava que de noite, mas muito de noite mesmo, abria escondida a janela do seu quarto para olhar as estrelas. E começou a olhar detalhadamente as estrelas e viu que elas eram mesmo feitas de uma esponja branca-prateada macia e cintilante. Mas, de repente, seus olhos brilharam mais do que todas as estrelas reunidas numa única galáxia. Então, Bia abriu bem seus olhinhos e viu que um menino do outro lado da calçada olhava apaixonadamente para ela.
Uns dizem que ela virou uma estrela, outros que ela simplesmente pulou a janela.