sábado, 30 de maio de 2009

Além de mim...

Abri o céu. Não-todo. Havia subido no topo da montanha mais alta de mim mesmo quando senti que era iminente, ou melhor, que não havia outra coisa a fazer senão esgarçar aquele ar já extremamente rarefeito em meus poros, nos meus olhares sem culpa. A lua e os efeitos das marés já haviam ficado para trás há centenas de vestígios possíveis. Tudo se esfumaçava e o que se chamava de bruma era o ontem confundido com o despertar alumbrado. Perdia lentamente a consciência das coisas e o teu sabor que sempre esteve no contorno mais extenuante da minha memória, desvanecia delicioso como um orvalho no precipício da manhã. Sorri um vestido de lembranças íntimas possíveis e tudo me era vasto, claro, estelar, liberal e, perfumadamente campesino. Subi mais um pouco, abri constelações nunca vistas e rios sem bordas derramavam-se em afluentes que orbitavam o tempo mais-que-perfeito. Tecidos cobertos de estrelas serpentearam-me num êxtase que não havia nada de estóico, muito pelo contrário. Deparei-me com jatos oníricos de rastros de algum asteróide embevecido por testemunhar aquele momento, contornei galáxias espiraladas que uivavam para dentro dos buracos negros e faziam suas luzes sumirem para reaparecerem em segundos incalculáveis. Frenesi, talvez conviesse chamar um universo de palavras por dizer. Mas nenhuma era suficiente. Nenhuma cabia dentro da alma da frase.
Então, foi assim que não me restando outro sentimento aqui na terra, abri o céu. Não-todo, volto a dizer. Mas o suficiente para que no topo da minha vertigem pudesse apaixonadamente te encontrar de soslaio e, você, cadente, candente, sorria misteriosa como que a iluminar a noite anterior.

domingo, 24 de maio de 2009

Bumerangue

Bumerangue

Entre as omoplatas, via-se-lhe um naco pontiagudo, disforme, protuberância nodosa rosa-via-lacteo perfumado de cera de abelhas de eucalipto vergado ao vento sul. Fez-se mel e deixou escorrer pelo dorso nu com a certeza da esperança de que as antigas asas ressuscitassem o anjo adormecido. Outros vieram ver o antigo procedimento testado com sucesso desde antes da primeira Queda. Uma revoada em turbilhão anoiteceu sobre o decaído. Neste mesmo átimo do instante inaugural, um hálito frio resvalou como uma andorinha resvala subitamente contra a corrente de vento espiralando poeiras cósmicas translúcidas com leves indicações de um alaranjado sobre azul carmim. A partir de este estalar de línguas, alguns animais passaram a existir. Ainda não havia nomes prometidos para eles, mas o haver descortinava-se como se fosse a única coisa a se fazer até então. Nasceram porque era imperioso desvencilhar-se das penas encharcadas de promessas sem função. Então, melhor que batessem asas numa direção qualquer a ficarem enterrados sob as palavras ainda não proferidas. Lançaram-se num vácuo de ideias, cogitus interruptus, dir-se-ia milhões de anos avante àquele átomo de tempo primevo. Sem a proteção das palavras ainda não nascidas, corria-se todo o risco conhecido até então: tornarem-se sombras difusas, contornos mal definidos ao cair da tarde, vulto de animal por detrás da neblina no nascer do dia ou, o que era pior, mergulho eterno na caverna da noite sem lua. Vagidos incompreensíveis soaram como se a tristeza acabasse de ter sido inaugurada, mas era só o que não tinha nome que rastejava por entre corpos com os olhos ainda não despertos. Um movimento atônito, deambulante, parecia querer sair por entre aquelas omoplatas. Regou-se-lhe novamente com uma porção devotamente maior de mel que a esta altura recendia para além de todas as fronteiras e limites conhecidos. Se ainda o voo estava sonambúlico era só porque as palavras eram poucas, voltou-se a dizer, parcas para efetuar o destino concedido. Alguns se arvoraram a tê-las antecipadamente ou imerecidamente de acordo com o desalento sentido. Desamparo veio antes de desalento – agora se sabe - e, com isso, inaugurou-se o que se acostumou a ser designado como voz sem som, olhar sem visão, mão trêmula que jamais conhecerá outra. Era o vazio rodeado por camadas inabitáveis do desconforto atópico. Perseverança foi uma palavra que veio depois, depois da sexta tentativa fracassada de produzir entre aquelas omoplatas o ressurgimento das asas-sem-queda. Tudo que sempre se fez foi lançar letras para que elas ao tropeçarem umas nas outras formassem palavras-frases que elevassem a cópula a um nível de entendimento e infinitas possibilidades: neologismo era apenas uma pequenina fração do mel derramado sobre o não nascido. Mas este foi o mel regado mais uma vez sobre aquela protuberância para que de certas mãos escorressem a novidade anunciada. Assim, lançou-se sobre os não-nomeados a razão por vir, mas as palavras escorregaram profundos sentimentos, dores da partida indesejada, privações mal solfejadas, acordes inaudíveis, traições tempestuosas como já acontecia noutras inóspitas regiões, paixões descalças de firmamento e amores-apaixonados, lúdicos na mais bela desrazão do viver. Tudo num único dia e ainda tendo a promessa anunciada de retornar com a asa àquele ser adormecido. Para sempre. Para sempre? Não se teria dito este ‘sempre’ se soubesse o que seria antecipadamente esta doença da eternidade na cabeça dos ainda não nominados. Antes dever-se-ia tê-los instruído satisfatoriamente sobre o tempo do regozijo, o tempo da dor, o tempo da saudade, o tempo da aprendizagem e o tempo incompreensível que de todos é o mais importante, pois data o tempo do amor. Disto resultou uma Babel de tangências e infinitizações nos desamparos não concedidos, mas impossíveis de evitar. Por exemplo, nunca foi possível explicar que nem sempre os opostos são contraditórios, mas muitas vezes complementares ao mel que adoça o voo de uma abelha já em desuso. Uma enorme revoada se fez e ainda não era a manhã do outro dia. Percebeu-se que as coisas deviam seguir um caminho ainda incompleto, não concedido ou não totalmente pensado. Os voos fugiam ao controle do vento, pois as asas tornavam-se mais e mais singulares seguindo o rumo do sêmen primordial. Três pequenos rios e ainda um número imperfeito de árvores e outros imprecisos animais selavam as condições para a manjedoura alimentícia do saber em curso para sempre igualmente incompleto e para sempre igualmente buscado. Era esta a ideia do temporariamente infinito que ficou para sempre incompreensível. Eternidade no presente, diz-se. Mas a protuberância entre as omoplatas não vingou asas, antes, temor sobre a sombra do futuro com os olhos embaçados sobre o passado. Secou por completo as evidências de outrora. Levantou-se com dificuldade e, pela primeira vez, deambulou satisfeito por entre outros olhos, divinamente doces, misteriosamente cativantes, enigmáticos para todo o sempre, que a cada passo retribuía-lhe femininamente, tal como um bumerangue em sua elipse, a insistência da recém-inaugurada palavra paixão.           

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Os olhos de Bia

Era uma vez uma menina que gostava de olhar pela janela da sua pequena casa. Era uma casa feita com muita imaginação e poesia. Mas não a sua janela. Ah, isso não. Ela era real como o seu vestido de nuvem azul. Mas da janela ela espiava o mundo. E não havia fronteira que pudesse deter o alcance dos seus olhos que eram um verdadeiro passaporte para o mundo. Eles eram vivos como uma abelha travessa que ziguezagueia por entre as flores desenhando um oitoinfinito. De sua janela ela via até a muralha da China, mas se alguém se admirava com este feito, Bia (ah, era este o seu nome) logo exclamava: "mas até da lua já viram a muralha da china. Não vejo vantagem nenhuma que eu consiga vê-la daqui." E Bia não parava por aí. Olhava com surpresa e admiração o Alaska gelado e se maravilhava com as focas rolando dengosas ao sol e mergulhando ligeiras sob a aurora boreal. Debruçou-se um pouco mais para ver um girassol que capturava raios solares por detrás de uma manada de búfalos na ilha de Marajó. Ficou encantada com uma ventania que dobrava bambuzais no Japão. Reverência nipônica entre humanos já tinha ouvido falar, mas entre dois elementos da natureza era a primeira vez. Riu de se debulhar em lágrimas com dois esquilos brigando por uma noz numa floresta na Irlanda. Noutro dia chorou muito ao ver um filhote de joaninha perdido da sua mãe dentro da floresta da Tailândia. E ficou igualmnte chocada ao ver uma tourada sanguinária em Madri. Disse para si mesma que nunca mais olharia naquela direção. Bia era extremamente decidida. Quando ela decidia ver alguma coisa, nada ou ninguém a impedia. Assim, nada escapava aos seus olhinhos ligeiros como qualquer outro bichinho arisco que vocês queiram pensar.

Sua mãe fechava a janela todos os dias às seis horas da tarde. Dizia que era por causa dos mosquitos. Na verdade, sua mãe Miríades, queria companhia para rezarem juntas a Ave Maria. 

Certa noite Bia teve um sonho. Sonhava que de noite, mas muito de noite mesmo, abria escondida a janela do seu quarto para olhar as estrelas. E começou a olhar detalhadamente as estrelas e viu que elas eram mesmo feitas de uma esponja branca-prateada macia e cintilante. Mas, de repente, seus olhos brilharam mais do que todas as estrelas reunidas numa única galáxia. Então, Bia abriu bem seus olhinhos e viu que um menino do outro lado da calçada olhava apaixonadamente para ela. 

Uns dizem que ela virou uma estrela, outros que ela simplesmente pulou a janela.

  

domingo, 3 de maio de 2009

Busca

Você precisa de alguém. E isso basta. Você abre a porta da sua casa e sai pelo mundo para encontrar a pessoa dos seus sonhos. Somos uns sete bilhões e mais alguma coisa. Então, você pensa: vai ser fácil encontrar alguém com este mundaréu de gente esparramado pelas ruas, bares, hospitais, cinemas, teatros, museus, boates, estádios de futebol, igrejas, locais de trabalho, escolas...a lista é interminável. Caminhar é preciso ainda mais quando se está com fome, fome de amor. E você decide comprar um par de sapatos novos, pois mesmo achando que não será difícil, pode levar um pouco mais de tempo para encontrar a pessoa certa. Ainda por cima, chove. Intransitivamente chove e não há nada que você possa fazer com isso. Simplesmente chove e tem sido assim desde o princípio dos tempos. Não, você tem horror a guardachuva. Passa direto pelo camelô que insiste em querer te proteger. Você pensa que não é desta proteção que precisa, além do mais você adora sentir a chuva correndo sem metáforas pelo seu rosto. Isto te faz sentir melhor por que é do suor que você tem intolerância. Alergia, confessa. O único problema da chuva sem a devida  proteção é o óculos que embaça. Mas você não reclama. Quer deixar a chuva escorrer pelo seu corpo, assim como quer deixar a solidão desacompanhada de você. 
Então você caminha, caminha, caminha. E olha para tudo e para todos. Experimenta a vida. Prova a sua existência e sorri dos temperos exóticos ainda desconhecidos em sua maioria. Alguns lhe devolvem o olhar outros passam como se você fosse a inexistência que sempre lhe meteu medo. Existir e resistir parece que agora fazem parte de um vocabulário que só você possui as perguntas certas para as respostas por vir. 
Você compra um bilhete de cinema, outro de metrô, grava uma música, toca violoncelo em praça pública, brinca de bola de gude com algumas crianças num parque com poucas árvores, conserta computadores para executivos de uma multinacional, torna-se ajudante de administração de um salão de cabeleireiro de segunda categoria, faz grafites por ruas, muros e avenidas, escreve uma tese de pósgraduação em conforto ecológico ambiental, tritura papéis velhos numa gráfica, compra uma bicicleta e pedala até que as planícies desapareçam, embarca num navio como ajudante de cozinha e quando se dá conta de tudo que fez até então, percebe que está tão longe que não sabe mais o que você buscava. 
Quer gritar, mas já não sabe mais qual é a língua oficial do país em que você está. Será que seu pedido de socorro vai ser entendido fora daquele quarteirão que era seu domínio e segurança?
O medo agora parece correr junto com a palavra saudade. Quer pronunciá-la, mas já lhe faltam os nomes certos para acompanhá-la. O vizinho mais próximo da palavra saudade é a palavra amor. Lembra de tê-la pronunciado algumas vezes em sua vida, mas já não lembra em quais circunstâncias e nem dirigido a quem. Então decide voltar para reencontrar o amor perdido. E a cada passo de volta é também um passo rumo ao desencontro entre a palavra pensada e a palavra proferida. Quis esquecê-la, porém viu que era tarde demais para isso. Voltava para casa por uma estrada diferente. 'Vocês já repararam que a estrada pela qual a gente retorna para casa é sempre outra?' Com quem você dialogava na sua solidão? Estou falando com você. Com quem você dialogava neste seu retorno? Sou eu que estou te trazendo de volta. De volta para você mesmo. E você deslizava sentimentos, pequenos mimos literários pelas estações de trem pelas quais ia passando a cada retorno à gare que te recebia como quem regurgita das bocas que se abrem do trem outras infinidades de pessoas aos longo das horas dos dias e das estações de cada ano. 
Você foi longe demais nesta sua procura. Você achou que encontraria uma escala de valores, uma estatística ou um catálogo de pessoas disponíveis por sexo, idade, cor, covinha na bochecha esquerda, mãos inverossímeis e olhos tormentosos? Mas quem você pensa que é, ou pior, quem você acha que é a humanidade? Tudo menos ser inocente. Está descrente? É preciso ter fé. Está a ponto de desistir? É preciso recomeçar. Por isso te trago de volta para casa. Eu te conheço, à vezes é melhor se sentir seguro do que se sentir amado. Ora, você prefere um amor e uma vida insegura? Mas...
Pronto, agora você está bem perto da sua casa. Reconhece as árvores da sua rua, o vendedor de jornais, o açougueiro da esquina, o bêbado sempre caído no mesmo lugar? Você logo logo estará melhor. Amanhã você vai poder recomeçar seu dia, sua busca... 
Por que você não quer chegar em casa? Por que você resiste assim? Você está chorando? Como assim? Esta não é a sua casa? Esta não é a sua cidade? Mas como isso foi acontecer? Meu Deus, em que momento desastroso foi que me perdi de você?