terça-feira, 28 de abril de 2009

Outras Palavras / Meduso-me

Medusa, Caravaggio.

Pintura: Medusa / Caravaggio

Outras palavras é um espaço de diálogo e intertextualidade com outros autores, escritores e leitores deste blog. Michelle aqui se lança mais uma vez, ou melhor, se lança de um botequim para seu amigo.                                                                                    Carlos Eduardo



Meduso-me (Notas de botequim)

A um amigo

 

Sorrio

Por quanto tempo vou sustentar?

Respiro tédio

 

Entre falas

Entre farsas

Entre falsos

 

Interfalos

Intervalas

Intervalos

 

Dentes me espreitam

Segundo após segundo

Canso

 

Eu ânsia

Olho para um lado

Eu ânsia

Olho para outro

 

Eu ânsia

Pele escorrida

Dissolvida

No osso de mim

 

Eu ânsia

Sem ter para onde correr

Ou gritar

 

Morte colada ao rosto

Santo sudário

Por quanto tempo vou sustentar?

 

Eu ânsia de mim

Pele esburacada

De mim

 

Por onde não entra ar

Meduso-me

Uso-me

Reduzo-me

 

Michelle Nicié

sábado, 25 de abril de 2009

Voo às cegas


Não sei muito sobre borboletas, mas sempre gostei muito delas. Seus ocelos, sua regrada simetria, suas combinações de cores inusitadas destas que se a gente fosse pintar num quadro ficaria horrível como destes pobres quadros de churrascaria de estrada. Mas existem aquelas de uma única cor. Pois foi uma destas que me interpelou hoje de manhã enquanto eu caminhava por entre matos, sombras, raios de sol e no a posteriori da chuva torrencial de ontem que lavou a enorme pedra com gravatás e tufos intocados da saudosa mata atlântica. 
Então, borboleteando seu amarelo-quase-limão, ela me interpelou como se me perguntasse por que eu por ali passava. Resposta não tive, antes, reverenciamento ou encantamento com este diálogo improvável. Logo surgiram outras, era um transvoo de borboletas todas da mesma espécie-não-sei-o-quê. Amarelas-limão. Quis responder que estava só de passagem como em outras manhãs em que acordo cedinho e vou deambular pelas matas. Quis respoder, mas já não sabia mais a qual responder porque agora todas em coro me perguntavam por que eu não voava? Esta resposta que a princípio me pareceu fácil de responder, pois eu poderia recorrer ao peso dos corpos, à insustentável leveza do ser, ao peso do ar, à aceleração da gravidade com seu g=9,8m/s2, acabei achando ridícula a minha tentativa cientificista de conversar com seres que me pareciam tão elementais como as fadinhas de Peter Pan. Elas voavam rápido num voo que apenas parecia às cegas. 
Vocês já repararam o voo sem a mínima uniformidade ou direção de uma borboleta? Mas, não se enganem, pois elas sabem o pólem que procuram. São apenas visualmente destrambelhadas e estabanadas. Em aparência são como aquelas pessoas que vivem esbarrando em tudo, tudo quebram. São um perigo para os copos e as cristaleiras da casa das avós. Só em aparência, porque uma borboleta está muito mais propensa a ter sua asa quebrada do que a quebrar algo ao seu redor.  
Às vezes não agimos assim como as borboletas? Voamos em nossas vidas meio que às cegas, deambulando feito um paciente pós-operado pelos corredores de um hospital que vai tristemente levando o soro enquanto caminha, caminha, caminha.
Quis mais uma vez responder àquela borboleta que me interrogava. Fiquei sem saber que resposta dar-lhe, mas eu também não sabia sua pergunta. Agora talvez eu saiba o que me impressionou naquele voo. Ela não me interrogava, ela me ignorava. Era eu que queria saber um pouco mais sobre seu mundo. Eu é que queria achar a palavra certa para descrever aquele encontro e não achei. As palavras, tal como a borboleta, voaram de mim. Talvez, aparentemente, sem um rumo certo. 
Os pólens das palavras são os leitores. Através deles as palavras proliferam outros escritores que procuram novos pólens. Esta sequência também a mim me parece nesta manhã, tal como daquela borboleta que me encontrou se eu não a olhasse.  

quinta-feira, 23 de abril de 2009

As mãos de Clarice

Clarice esboçou um sorriso. Na verdade era um sorriso quase triste. Tudo na sua vida parecia se resumir àquele momento da sua infância em que levada pela mão do seu pai tocou no rosto do seu avô já desfalecido na cama. Ela não sabia o por quê, mas aquela sensação de frieza daquela carne em suas mãos faziam-na tremer de medo toda vez em que o frio da noite ameaçava rugir contra o agasalho protetor da sua lembrança encobridora. A morte dançava diante dela sem que ela ainda soubesse o que era a felicidade.
No dia seguinte, seu pai a levou para o parque e a empurrou por horas seguidas no balanço, seu brinquedo preferido. Adorava sentir o vento em seu rosto, seus cabelos correndo soltos contrários ao seu movimento. Pela vida toda Clarice queria lembrar do balanço e do seu pai, mas a frieza daquela carne cortava-lhe a garganta e o choro convulso corria em seu rosto. Havia naquele toque algo que ficara impossível de ser dito como uma lua encoberta por uma nuvem que só a claridade ao redor a denuncia, mas não é o suficiente para sabermos em que fase ela transita pelos céus naquela noite.
Clarice nascera cega. Jamais enxergara a luz do dia, muito menos as estrelas da noite. Via tudo leitoso, embaçado como um susto. Seus olhos eram suas mãos e suas mãos eram responsáveis por tudo aquilo que tocava. Ao contrário do rei Midas, tudo que ela tocava virava realidade por mais dura que fosse. E aquele rosto do seu avô era a dureza mais triste que ela havia sentido porque ele foi acompanhado pelo silêncio. Um silêncio de histórias que eram iluminadas pelo avô toda vez que Clarice ia dormir na casa avoenga. 
Isso durou até seus doze anos quando foi tocada pela música. Era a música mais bela que já havia escutado. Vinha de um lugar que não lhe era desconhecido, apenas ela ainda não o havia habitado. Na verdade, ela nem sabia que podia caminhar por dentro das notas musicais. E as notas foram lhe abrindo caminho e o rosto do seu avô já não doía tanto assim em suas lembranças. Clarice agora cantava e seu canto empurrava para detrás da sua retina opaca, toda o medo que habitava seu interior. Foi estudar canto e cantava com luz, tal como um passarinho na alvorada de uma manhã ensolarada.  
Clarice esboçou um sorriso, mas já não era de tristeza. Era sua primeira apresentação para uma plateia totalmente desconhecida. Mas ela não teve medo. Medo ela sentiu aos quatro anos e pensou que o carregaria para sempre. Agora, seu frio na barriga era um frio da descoberta do amor, o amor pelo mundo. E era a música que descortinava o mundo. E era ela quem produzia seu próprio caminhar seu desafinar seus passos. 
Ao terminar a apresentação, os espectadores aplaudiram de pé durante um longo tempo aquela menina que ao cantar iluminada pela sua alma, iluminava tudo e todos ao seu redor. 
E foi assim que pela primeira vez suas mãos tocaram aos céus. 

sábado, 18 de abril de 2009

Algumas curvas sobre a paixão

Velho Lendo a Bíblia

Alfredo se apaixonou sem saber o que era  paixão, ou pior, não sabia o que lhe esperava. Foi numa tarde qualquer de um sábado friorento que ele havia dado por perdido. Nenhum filme bom passando (ele que era um cinéfilo de carteirinha), a maioria dos amigos viajando, ou seja, Alfredo estava à mercê do único programa que lhe cabia. Entrar na sua livraria preferida, fuçar novos títulos e tomar um capuccino. Mas a vida, sempre ela, está atenta aos desavisados da vida. Digo que parece que a vida espreita os incautos, pois quando eles estão totalmente distraídos advém um golpe de ar fatal na nuca, ou o salto do leão sobre a presa, como diria Freud. 
Pois bem, Alfredo estava a menos de cinquenta passos da sua livraria na zona sul do Rio (já quase podia sentir o cheiro dos livros implorando para serem desvirginados) quando escutou uma senhora que já ia lá pelos seus oitenta com ar muito distinto pedir-lhe um inusitado favor: "Meu filho, você poderia me levar até Teresópolis"? Alfredo olhou incrédulo para aquela senhora que amavelmente lhe segurava pelo braço e o olhava profundamente dentro dos seus olhos. Sem se intimidar ou dar-se por vencida ela reafirmou o seu pedido. "Você poderia me levar até Teresópolis"? Alfredo, ainda estupefato, não sabia se ria ou se soltava o braço daquelas mãos trêmulas, mas cheias de decisão. Quis argumentar, mas nenhuma palavra um pouco mais sincera conseguiu sair da sua boca. Sem se importar com as tentativas de argumentação do Alfredo, ela continuou. "Meu filho, todo sábado de manhã eu vou para minha casa de campo em Teresópolis e nesta semana minha neta foi viajar e esqueceu de comprar as minhas passagens. Você me faria este favor?" Alfredo aproveitou a deixa para dizer que era longe, que ele estava atrasado para um encontro, mas diante do silêncio contundente daquela idosa senhora que parecia ter 'os olhos pedintes por profissão', como diria Alberto Caieiro. "Eu te sirvo um café coado em coador de pano quando chegarmos na minha casa." Alfredo se perguntou se ele próprio era confiável. Fez esta pergunta silenciosa por aquela ilustre desconhecida. Como que uma senhora aborda um transeunte na rua e lhe pede uma carona para um local tão distante? Alfredo pensou em avisá-la do perigo de fazer isso, quis avisá-la de um montão de coisas como se ela fosse sua própria mãe. Quis, mas ao invés disso, quando ele deu por si, estavam os dois dentro do seu carro já na Linha Vermelha em direção à serra. 
Foi quando ele resolveu perguntar o nome daquela simpática senhora. "Teresa. Imperatriz Dona Teresa Cristina, mulher do Imperador D. Pedro II." Alfredo soltou uma enorme gargalhada que ecoou por todo seu sábado. E, com certa ironia, fez uma voz reverenciosa. Então a senhora não deveria ter me pedido, a senhora deveria ter me ordenado como se faz a um vassalo. Teresa deu de ombros e continuou. "Sou tataraneta da Imperatriz." Verdade ou mentira, Alfredo respirou aliviado, pois pensou estar dando carona para uma louca. Mas o que ele ouviu a partir daí foi uma das mais belas histórias de amor de sua vida. Teresa, muito jovem foi amante de um jovem médico da cidade. "Naquela época", ela disse, "eu era muito mocinha, devia ter uns dezesseis ou dezessete anos. Pegava meu cavalo e íamos nos encontrar numa cabana no interior do Parque Nacional. Naquele tempo as coisas eram mais difíceis, mas nos apaixonamos perdidamente um pelo outro. Fui sua amante durante toda minha vida. É claro que casei e tive filhos, mas uma força maior do que todas as leis e regras nos empuxava um para o outro e nunca conseguimos nos separar. Ele também se casou, teve seus filhos, mas permanecemos para sempre juntos. 
Alfredo contou que coincidentemente nascera em Teresópolis e também era filho de um médico da cidade. Seu pai já estava bastante velho e seria bom deixá-la lá, pois depois do capuccino prometido, iria visitar seu pai. Na verdade foi essa ideia que o convenceu a dar a carona àquela ilustre desconhecida. Mas a forma com que ela lhe dirigia o olhar era de uma ternura tão grande que mesmo que ele não tivesse parentes lá em Teresópolis, ele a teria levado. Era como se ela o conhecesse a vida inteira. Agora ele tinha certeza disso. E quanto mais certeza ele tinha, mais ela contava episódios de um amor apaixonado que muitas vividas vividas não seriam capaz de chegar próximo daquele fogo irresistível entre os dois. Seriam necessárias várias vidas apaixonadas, vários filmes românticos, inúmeros livros com o melhor da literatura romântica para recontar aquela história. Alfredo ia devagar querendo ouvir toda a história de Teresa. 
Chegaram diante de um casarão no Quebra-Frascos, um bairro charmoso na saída da cidade em direção à Itaipava. 
Alfredo parou seu carro diante do portão. Desceram, ela segurou mais uma vez fime no seu braço, tal como na calçada quase diante da livraria há duas horas atrás. Era um enorme portão de madeira verde com puxadores de ferro preto. Ele a ajudou a empurrar e fechar com dificuldade o pesado portão que deveria ter a idade dela. Avançaram por uma alameda ajardinada com ciprestes, alfazemas e hortências até alcançarem a porta que dava para um salão de inverno onde havia um velho senhor lendo um livro. Alfredo um pouco impaciente disse-lhe antes de entrarem: "Não pensei que o seu marido estava em casa. Não vou incomodá-lo? Já lhe trouxe até aqui." "Não," retrucou ela com firmeza, "fui eu quem o trouxe até aqui."
Quando Alfredo entrou na sala e se deparou com aquele senhor lendo tranquilamente o livro, seus olhos arregalaram úmidos de espanto e, incrédulo, apenas conseguiu balbuciar uma única palavra: Pai!? 

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Histórias de uma gaveta

[mulher-gaveta-Alison+Brady.jpg]


Era uma gaveta desorganizada. Toda vez que bocejava, algo entrava ou saía. Vinha sendo usada desde quando você era pequenina. Naquela época guardava seus lacinhos de cabelo, suas canetinhas coloridas, seus estojos do colégio, retratos do papai, da mamãe, muitos do irmãozinho e de toda a família. Pouco a pouco coisas diferentes iam e vinham dentro de mim. Em geral, assim que surgia alguma coisa realmente muito nova, outra que era guardada como relíquia, misteriosamente sumia. Assim foi com um lindo diário rosa e branco. Quando ele chegou, desapareceram de uma só vez: uma chupeta velha e encardida, uma foto sua após o banho e ainda sem roupa, alguns lápis sem ponta e outras quinquilharias há muito em desuso. Mas, com o diário também chegou uma escova de cabelo nova, dois batons e um estojo prateado de pintura. 
Você estava crescendo rapidamente, e eu ali, fiel, ao lado da sua cama a testemunhar seus sonhos mais  juvenis e seus assombros mais deslumbrantes como a descoberta das mudanças em seu corpo e a primeira menstruação. 
Certo dia, mãos estranhas me invadiram abruptamente. Eram mãos que pela tessitura da pele e a cor do esmalte, demonstravam já terem aberto e fechado muitas outras gavetas em sua vida. Através delas veio uma sensação de vazio. Fiquei de boca aberta e totalmente nua por uns três dias e duas noites. Depois suas mãos retornaram para mim. Fiquei saciada e, com o sentimento que só aqueles puxadores me davam, fiquei emocionada como um armário que se abre para receber um vestido novo.  
Você havia crescido. Agora você me depositava um celular, um ipod, uma máquina fotográfica, batons de cores extravagantes e uma caixa de remédios que não soube identificar, mas suspeitei o que seria pela sua idade. Foi por esta época que surgiu em mim A paixão segundo G.H., A poesia Erótica de John Donne, Drummond, Silvia Plath, Ana Cristina Cesar, Florbela Espanca e muitos outros mais.
De repente, uma enxurrada de fotos. Você estava apaixonada! Em mim não cabia todo o seu contentamento. Mas, passado algum tempo que não sei precisar quanto, pois madeira sem seiva pouco sabe de si, algo começou a mudar. O abajur de cúpula de corações foi trocado por uma luz fria e suas mão não reviravam, aflitas, aquele transbordamento de fotos. Esvaziei pela metade. Todas estavam rasgadas ao meio. Sua tristeza solitária também era a minha, poque a parte de você que havia ficado era apenas meio sorriso. Eu também estava entreaberta.
Num fim de tarde, após tantos anos (quantos?), a porta do quarto se fechou. De vez. Ouvi seu ruído surdo e sabia que era definitivo. E eu estava fria, vazia, labiríntica sem ao menos um desvio ou um organizador. De que vale um puxador sem as mãos para fazê-los cumprir sua função que era a de me abrir e fechar? Com a boca fechada há tanto tempo, fico sem saber se ainda há vida lá fora. Alguém aí saberia me dizer? Preciso urgente encontrar uma mão amiga, ou então uma mão que abrigue o meu desamparo.
Carlos Eduardo Leal

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A emoção de ler um bom livro



Olhei na minha estante e me deparei com um livro que eu havia ganhado de presente há uns dois anos. Ele ficara ali como um resto de história para ser lido. O livro é um ser fantasticamente interessante. Dentro dele podem conter todas as lutas, as vitórias, as derrotas, os mais incríveis romances, as mais sórdidas traições, um suspense eletrizante ou apenas uma boa ficção a ser contada. Ele pode conter tudo de todo o canto da terra, mas se não abrirmos suas páginas ele ficará para nós como uma virgem sempre à espera de ser deflorada. Ou então, tudo não passará de um grande equívoco ou mal entendido. O autor pesquisou, criou, perdeu horas intermináveis de sono, teve insights nas horas mais inapropriadas, subverteu, imaginou, mas o leitor sem abrir um livro é como um cego que não sabe para que serve a sua bengala. Um livro pode muitas vezes nos livrar de alguns tropeços, ou pode nos fazer tropeçar na emoção engasgada, atravessada como um espinho que não desce. 
Pois foi isso que me aconteceu quando acabei de ler Les Fleurs de Beatrice Rouge (Éditions du Avant Garde, 2006) . É a história de Christine, uma menina que nasceu cega, mas que enxergava mais do que todos à sua volta. Ela nasceu no fin de siècle XIX entre Carcassone e Bordeaux, duas regiões campestres da França. A família materna tinha uma pequena fazenda pecuária em Carcassonne onde produziam queijos e, do lado da sua família paterna, seus avós trabalhavam para uma vinícola de um rico produtor da região. Ela foi criada entre queijos e vinhos. "Mas minha sensibilidade olfativa sempre esteve ligada às flores. Eu era capaz de distinguir uma madressilva (Lonicera) de um lirio a duas dezenas de metros. Sentia seus perfumes e me embriagava sonhando com suas cores. Daí para me transformar numa fabricante de perfumes  caseiros foi uma consequência normal como quem abre os olhos todas as manhãs." 
Ela mesma desenvolveu sua fórmula para os "pequenos frascos"(...)"para cada frasco, um novo mistério a desvendar. Era como se eu fabricasse um perfume para a alma de cada pessoa. Cada uma carregava dentro de si um tipo de sentimento que eu era obrigada a desvendá-lo para encontrar a fragância correspondente". 
Christine, ao longo de sua vida, irá encantando a todos com sua perfumada magia. Não só encantando, mas transformando a vida das pessoas daqueles pequenos vilarejos do interior da França. Disto vai resultar que o encontro de cada um consigo próprio irá desvelar inúmeras possibilidades de sentimentos jamais vivenciados por aquela gente simples, interiorana.
Um livro sobre o amor à vida. Um livro que nos revela que existem inúmeras formas de amar e que as transformações na verdade estão dentro de nós. É isto que Christine nos faz acreditar. Mas, será que ela mesmo acreditava? 
Ps: Como tenho recebido milhares de e-mails (talvez tenha sido apenas um, ou dois, não lembro mais, mas isso pouco importa agora.) de pessoas indignadas, chorosas, em completo desespero porque não conseguem achar e muito menos comprar o Les Fleurs, tenho que dizer sobre sua origem, sua etiologia, ou dizer simplesmente como ele me chegou nas mãos. Soube que ele pertenceu primeiro a Molloy, que o emprestou para Malone, que deu para Mahood e que, por fim, entregou para Montano. Estranhamente, todos com "M", inclusive o mal de Montano, este que é acometido de "estar doente de literatura". Pois foi ele que me deu seu único exemplar. Talvez eu esteja sofrendo do mesmo mal de Montano. Talvez, talvez precise encontrar Montano para desfazer esta sequência interminável. Eu que agora passo a sofrer deste mesmo mal. Talvez eu possa dar este livro a você. Tal como Borges, consegui meu livro de areia e preciso me desfazer dele...
   


domingo, 5 de abril de 2009

Fantasmas

Toda cidade possui seus fantasmas. Alguns vivem em eterna neblina, lá aonde suas vistas não alcançam. Outros contemplam suas paisagens e se perdem nelas. Porém, há casos mais graves. São aqueles que não são vistos por ninguém: mendigos, analfabetos, desempregados, catadores de lixos e transeuntes anônimos. Ninguém os vê. Não são notados por nenhuma instituição pública e, mesmo a igreja, só os permite do lado de fora para arrecadarem um quota muito menor do que os polpudos dízimos. O dízimo é o sinal do arrependimento e da culpa, ou melhor, é uma forma moderna de holocausto e oferenda para agradar, receber proteção e aplacar a fúria dos deuses. Mas qual é a dívida que a cidade possui com os seus fantasmas? Parece que nenhuma, porque o incômodo que eles provocam é apenas um obstáculo à passagem na calçada, enquanto que o outro incômodo é um tormento na alma que requer solução/absolvição e contrita penitência. Por isso, se paga com dinheiro, sempre ele, nossa passagem entre as nuvens de neblina que nos cercam. Assim, não vemos estes fantasmas e continuamos incólumes diante do sofrimento ao nosso redor. É a nossa canhestra e torpe defesa contra o mal do outro. 
É preciso ter olhos de Clarice para ver um cego mascando chicletes que sorri olhando para 'ela' sentada no bonde, como no conto O amor. Sim, é preciso ter olhos de Clarice para ser um bobo no mundo porque 'só os bobos vencem sem perceber que venceram, ao contrário dos espertos que vencem com úlcera no estômago". "O bobo por não se preocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir, tocar no mundo . O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: 'Estou fazendo, estou pensando'". 
Devem existir muitos mendigos-clariceanos, bobos que nos olham com o desdém que uma criança parece nos olhar de baixo para cima perguntando o porquê da nossa pressa. 
Clarice enxergava estes fantasmas. Ela catava no meio da neblina as palavras caídas distraidamente ao chão. Estas que ninguém mais vê ou que por elas ninguém mais se interessa: palavras-poetas, palavras-nuvem, palavras-asilo, palavras-indiferença, palavras-paixão, palavras-palavras.  Catava-as e nos ofertava como quem faz uma oferenda. Ela transformava seus leitores em cúmplices, e, assim fazendo, nos salvava da nossa eterna miopia progressiva.   
Fazia isso como uma constatação do fato de ela também ser boba, porque "só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo." 

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Epistolar

Epistolar

 

Acordei de madrugada, mas a madrugada não estava mais ali. Ainda era noite e o tempo corria ligeiro como a brisa que entrava pela fresta da janela que você insistiu para que deixasse aberta. Seu corpo nu, alvo como a neve que caía lá fora, resplandecia como uma lua nova deitada sobre a cama. Sua pele sensível, perfumada, recendia a sexo, como a seda do lençol que se fazia cúmplice das nossas fantasias. Floração da pele é o que se diz. Ríamos da nossa primavera atemporal enquanto o vinho escorria doce sobre sua pele. Era inverno, nevava torrencialmente lá fora e você se despia defronte da janela para que eu visse a intumescência rosada dos seus seios. O tempo estancava enlouquecido enquanto a infinitude dos nossos desejos alçava voo até Ursa Maior. Queria você assim: nossos corpos se perderam um no outro durante horas a fio. E, naquela madrugada, única, num ímpeto de felicidade e completo desvario, atravessamos a rua correndo quase nus e fomos comer waffles na rotisserie defronte ao hotel. Não, não demos um pedaço na boca do outro. Éramos gulosos e a nossa gula não permitia concessões nem pequenos mimos. Ríamos/comíamos/devorávamos um ao outro através dos olhares. Embriagados de prazer, você cantava The other woman imitando a voz rouca da Nina Simone. Eu delirava exultante e cantava aos prantos Ne me quitte pas imitando a voz de Jacques Brel. Éramos dois clowns trapezistas sem a menor necessidade de uma rede de proteção. O mundo era nosso e nada mais existia. E é a isso que alguns chamam de amor-apaixonado. Amorapaixonado. Aquela noite foi mágica. Estávamos embriagados de vinho e prazer. 

Voltamos para o hotel? Não lembro mais. Aliás, muitas coisas se perderam na minha memória desde aquele dia. O que havia sido apenas um mero encontro casual no elevador do hotel, transformou-se num turbilhão de emoções apaixonadas. Quando percebemos estávamos no mesmo quarto como se nos conhecessemos há muitos anos. Acho que não dissemos nem ao menos os nossos nomes. Louise? Acho que sim. Sim, você me disse. E eu te chamei de Lou como se fosse a minha Lou-Andreas Salomé. Quem é que precisa de um nome quando a palavra amor é sufocada por um beijo interminável? Mas a minha memória não descansa. Minha pele também não. E meu corpo precisa urgentemente reencontrar o seu. O vazio que se instaurou dentro dele é capaz de abrigar uma floresta amazônica, embora em mim o Saara tornou-se um nome mais propício. Agora me lembro. Você é de Toulouse, sul da França. Louise-Toulouse. Tudo em você era sonoro. Por isso cantávamos para que nossas vozes se encontrassem em algum ponto daquela noite-com-neve. 

Querida Louise...ah, como é bom poder escrever o seu nome. Hoje faz um ano... Então, reescrevo. Querida Louise, esta carta endereçada ao nosso hotel está aos seus cuidados. Talvez na esperança de que um dia você possa retornar e a encontre vagando pelo saguão. Se não nos reencontrarmos, que você ao menos me encontre nas minhas palavras. O que não quer dizer que seja o melhor de mim, mas é o que insiste, tal como uma noite que investe e resiste contra o amanhecer. De resto, apenas lembro todos os dias que acordei de madrugada, mas a madrugada não estava mais ali. E sinto sua falta. Saudade é um nome que você não conhece. Mas eu me apresento através dela para um mundo de estranhos. Saudade é o nome desta madrugada adentro. Saudade é um nome que não cabe dentro desta carta...nenhuma palavra caberia.