segunda-feira, 30 de março de 2009

outras palavras / Sampagráficas

Outras palavras traz a poesia de Michelle Nicié e, com ela, seus espaços, descompassos, suas cartilagens sutis/apaixonadas/errantes pela paulicéia desvairada.

Carlos Eduardo 

SAMPAGRÁFICAS

Para S

“There are so many special people in the world”

 

Há lugares em mim

Pés e ruas

Camas e encontros

Hotéis e abraços

 

DESCOMPASSO

 

Museus e olhos

Barulhos e cansaços

Mais abraços

 

ESPAÇOS

 

Teus olhos em mim

Meus olhos para fora

Lá me encontro comigo/contigo

 

PASSANTE ANDARILHA ERRANTE

 

Me perco e me acho

A cada esquina

Da Avenida Paulista

 

EXPERIÊNCIA MÍSTICA

 

Apenas caminho sem vacilar

Sem tropeçar no instante.

 

Michelle Nicié

 

 

 

 

sexta-feira, 27 de março de 2009

Sobre a angústia ou "O despovoador" de S. Beckett

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A angústia pode ser definida como um sentimento/afeto para o qual não há saída. O sujeito se culpa por não ser capaz de achar um caminho para a vida. E sofre. Assim é que Freud no Mal-Estar na Civilização (1930) diz que a culpa é uma variante topográfica da angústia. A angústia é o medo/terror diante do futuro, ou é o futuro antecipado de forma apocalíptica. 
Para Heidegger, a angústia surge do nada. É apenas um vazio que está dentro de si que não tem nehuma causa ou que é causa de si mesma, causa sui. 
Para Lacan, em seu retorno a Freud, a angústia é um nada só que, diferentemente de Heidegger, este nada não é sem objeto. Ou seja, há um objeto da angústia que comprime, constrange e esmaga o sujeito. Muitas vezes ele é um objeto fóbico. A fobia por sua vez pode ser um 'apelo ao pai'. A questão é que este objeto não é identificável fora da análise. É preciso que a análise desvende do inconsciente aquilo que é impossível de ser dito. Um objeto que muitas vezes causa ao mesmo tempo, desejo e horror/repulsa/asco/nojo e vergonha. A proposta de uma análise, entre outras coisas, é fazer com que o sujeito possa dizer o indizível da angústia, saber de seus limites possíveis e caminhar em seu bem-dizer. Este indizível se materializa em situações ou soluções fóbicas do quotidiano que apesar de aparentemente servirem de proteção contra a angústia, impedem que o sujeito respire o ar da sua autonomia. A mortificação causada pela angústia é a mortificação do desejo inconsciente. Apagado em sua possibilidade de viver, o sujeito sucumbe ao cinza dos seus dias-sem-saída. Não é sem propósito que Freud identificou aí o sujeito em sua covardia moral como antinômico do sujeito ético. A Beata Vita, a vida feliz, fica então subsumida sob um território pantanoso onde cada passo em falso pode ser o próximo para a areia movediça do seu afeto. A angústia é um afeto que não engana e esta certeza destrói/corrói os muros de contenção que até então protegiam o sujeito: seus sintomas. Nesta perspectiva, para o neurótico é preferível fazer sintomas do que se deparar diante da angústia, que no fim das contas é angústia de castração, angústia diante da morte. Muitas vezes os sintomas são um norte, uma caminho a seguir. Quando o sujeito procura uma análise pode-se dizer que onde existia um sintoma a angústia irrompeu de forma abrupta/selvagem e sem sentido, tornando-o desbussolado para a vida. 
O despovoador (1970), texto tardio de Samuel Beckett (1906/1989), é essencial para pensarmos a angústia. A cena se passa toda dentro de "um cilindro de cinquenta metros de circunferência e dezesseis de altura em nome da harmonia (sic) ou seja mais ou menos mil e duzentos metros quadrados de superfície total sendo oitocentos de parede. Sem contar os nichos e túneis. Onipresença de uma fraca claridade amarela sacudida por um vaivém vertiginoso entre extremos que se tocam. Um corpo por metro quadrado, ou seja, um total de duzentos corpos número redondo". Beckett não nos diz quando isso começou, ou seja, quando ou como eles entraram lá. E, na verdade, não precisa, pois a princípio, a angústia não tem origem e nem fim. Eles estão lá e é o que basta. Estão sem saída. E isso não basta. Crianças recém-nascidas, jovens, adultos e velhos, divididos em algumas categorias: os vencidos, os buscadores, os agitados e os sedentários. As escadas para se alcançar os nichos e os túneis são poucas e faltam degraus. Ainda por cima, deve-se obedecer uma certa ordem circular, como no Inferno de Dante, para se alcançar a possibilidade de subir e descer os círculos do cilindro. Quando esta ordem é quebrada, a violência é escutada através dos murros e cabeçadas. A iluminação é fraca, mas o olho acostuma-se a tudo e a temperatura, "ela leva menos de quatro secundos para passar de seu mínimo que é de cinco graus a seu máximo de vinte e cinco, ou seja, uma média de cinco graus apeenas por segundo". A precisão numérica/métrica/termoelétrica de Beckett só faz aumentar a dimensão cirúrgica do cinza-sem-saída da angústia na qual vivem as duzentas pessoas no cilindro. Ao contrário de Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira, Beckett não precisa aludir às escatologias humanas para dar o tom de fim-de-mundo. Na verdade, ele nos fala que o cilindro é incômodo para o amor, a pele fica ressecada e sujeita a arrepios e "a ereção é rara". Isso basta para nos dar a ideia do desassossego da alma tal como em Fenando Pessoa. Como dissemos sobre o indizível que é a angústia, Beckett também nos alerta que "nem tudo foi dito e nunca será" nos antecipando um fim sem fim. Talvez esta seja uma bela metáfora para a própria vida, pois o homem busca tanto saber sobre sua origem para tentar saber sobre o seu fim. Com isso ele ilusoriamente imagina que  poderia em seus pensamentos, ao tentar antecipá-lo, saber um pouco mais sobre si e, portanto, desangustiar-se. Mas o cilindro só oferece mistérios. Ninguém se deita e "ninguém olha para dentro de si onde não pode haver ninguém". 
Se a angústia é pressentida como uma dor de existir, o caminhar na vida através da análise - embora muitas vezes seja extremamente difícil -, é uma aposta que depois da dor, a luz que a palavra revela compensará o caminho percorrido e a vida por viver.

 

Carlos Eduardo Leal  

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sábado, 21 de março de 2009

No silêncio eu entendo

O pior sobre o silêncio é achar uma palavra que o defina. Gostaria de achá-la. Ficaria procurando uma vida inteira se soubesse onde encontrá-la. Já procurei pelos desertos, nos mares gelados do sul, nas noites sem lua, nas ruas vadias, na magia do cinema e nas noites insones. Ah, já procurei em tantos livros que as palavras amarelaram de tão usadas. Algumas desgastaram-se com o tempo, outras simplesmente foram pouco a pouco desaparecendo como quem dá o último adeus ao seu grande amor numa estação de trem. Para achá-la preciso do silêncio. De um silêncio que não é solidão. Um silêncio que 'me aperta o peito e me faz suspirar'. Para encontrá-la preciso estar dentro do silêncio, e tudo o mais por fora. Só assim meus olhos se acostumariam com a escuridão e eu poderia escutar quem tanto procuro. Não é uma questão de estilo ou perspicácia detetivesca, e Edgar Alan Poe sabia disso na Carta Roubada. Tentei achá-la nas pausas das músicas, mas ali ela reverberava ainda mais alto. Como sofri no concert in F for oboe, strings, and continuo de Bach. Todo pequeno intervalo era o mote para tentar encontrá-la, mas o oboé me arremessava contras as cordas de uma forma totalmente sublime. E, assim, eu já não sabia se delirava ou se os sons me espiritualizavam numa eterna nuvem de imagens barrocas. Atravessei pântanos e me plantei como uma árovore que migra ainda em grão no bico de uma ave canora e viceja num solo longínquo onde nem meus herdeiros me achariam para reclamar a palavra por dizer. Há silêncios que me habitam, bem sei. Há partes de mim no prelo, quero dizer. Há outros lugares em mim que simplesmente desconheço, mas sei que existem. E a confirmação da existência destes lugares me é dada muitas vezes apenas por uma pequena modulação ou entonação da voz. Uma oitava acima e, pronto, lá está ela. Escuto então que ali, ali adiante, bem defronte de mim, existe outra parte. Apenas não a vejo, mas sei porque sinto. E sentir para mim já é prova da existência de um outro ser em mim. Sinto, logo existo. E não há nenhum mal entendido nisso. E esta é a prova de todos os mal entendidos. Se encontrasse em mim o que procuro fora seria a constatação de que há em mim algo que não eu, e isso me deixaria feliz. Ao menos digo que sim. E isso basta já que é uma crença. É preciso acreditar no silêncio embora eu não ache uma palavra para ele porque quanto mais eu falo, menos ele aparece. E isso me deixa triste, embora nem um pouco convencido da sua não existência. Já disse: falo, falo, falo, logo ensurdeço. Isto não é uma saída, mas um tropeço. Mesmo assim me leva adiante mesmo que seja aos trancos. Aos solavancos das palavras que vou tentando tatear. São fios mesmo estas palavras, fios que me conduzem, condizem, bem dizem outros lugares, outros sitios, como querem os portuguêses. De lá da terrinha penso que saudade pode ser uma palavra para abrigar o silêncio. Aliás, a palavra saudade pode abrigar tudo. Até nos abrigar nela. Menos nos proteger dela. Então não serve. O ruído da saudade me faz soltar âncoras e adormecer no outono. Gosto desta palavra: outono. Possui melodia, além disso, outono é uma palavra que cai. Gosto de palavras assim, sem pouso definido e ao desabrigo das estações. Outono é uma palavra que já atravessou todo o verão, mas ainda não encontrou seu inverno. Por isso ela ainda guarda um pouco do calor, mas já não há claridade e, sim, luminosidade. Outono é uma palavra luminosa. Talvez possa procurar uma palavra para o silêncio dentro do outono, ou dentro da luminosidade que acabou por trair o verão. Deu-lhe as costas e banha-se na luz que acumulou entre as gotículas de chuva e os raios do sol. Por isso que o extremo da luminosidade é o arcoíris que contrasta com o cinza das nuvens, mas guarda o sol dentro da chuva.
Talvez eu esteja perto de encontrar uma palavra para o silêncio. Ando cansado, mas ainda ávido, torrencialmente ávido. Sedento, diz-se. E já escrevi todo um livro sobre isso. A minha sede. Não me sobraram muitos lugares para procurá-la. Nesta busca vejo um oásis. Torço para que não seja uma miragem, um engano, uma ilusão que ludibria a vista e engana enlouquecendo a alma. Só me restou uma única esperança: procurá-la dentro dos teus olhos. Você deixa?

quarta-feira, 18 de março de 2009

Brinquedos Invisíveis / Conto

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BRINQUEDOS INVISÍVEIS


Ygor Yeralovich, ou simplesmente Y2, nasceu na Moldávia na antiga União Soviética.  A República da Moldávia é um pequeno país da Europa limitado a norte, leste e sul pela Ucrânia e a oeste pela Romênia. Valexandro Yeralovich, seu pai, perdeu Maria Sollkva Yeralovich sua esposa, logo após o casamento. Durante uma caminhada entre duas geleiras, ela prendeu a perna num bloco rachado de gelo e morreu congelada ali mesmo. Foi encontrada duas semanas depois do acidente. Ygor, irmão de Valexandro, penalizado com a tragédia do seu irmão, ofereceu sua filha, a pequena Irena para casar com o tio. Y2 é filho deste casamento consangüíneo. O resultado é que Y2 nasceu com glaucoma. Totalmente cego, o pequeno Y2 era cercado por muitos cuidados por Irena. Seu pai achava que a sorte realmente não sorrira para ele.

Muito longe dali, mas no mesmo dia e quase no mesmo horário do nascimento de Y2, nascia no interior do Ceará, Igor da Silva. Igualmente fruto de um relacionamento incestuoso entre Zito e sua sobrinha Waldicea de 13 anos. Igor, tal como Ygor, nasceu com glaucoma. Cegos e filhos da sorte incestuosa, eram igualmente fadados a uma dupla aridez: da vida sem visão e do chão frio e sem árvores na isolada Moldávia ou do barro rachado e igualmente sem vida em Crato, interior nordestino.

Irena sofria para cuidar do pequeno Ygor até descobrir que ele era cego. A constatação da falta de visão do menino veio trazer um certo alívio porque foi concedido a ela o direito de ajuda. Acontece que ali perto da casa de Irena morava Chukotka Yupik, ou simplesmente ChuYu como era carinhosamente chamada a velhinha esquimó, de quase cem anos, vinda da Groenlândia. Ninguém sabia dizer ao certo como ela tinha vindo parar ali, mas havia chegado há mais de vinte anos – isso quer dizer que ela já tinha quase oitenta – quando foi morar perto da casa dos Yeralovich. De mãos fortes e rígidas de enfrentar condições tão inóspitas de vida, ChuYu foi a pessoa certa para o pequeno Ygor. A primeira palavra ou grunhido que se ouviu da boca do menino foi Chuuu, ou algo parecido, o que levou a velha senhora a soltar uma enorme gargalhada e mostrar aqui e ali a falta quase completa de dentes.

ChuYu ensinou o menino a andar e colocou-lhe um guizo no pulso para que todos soubessem por onde ele andava no meio de tanta neve. Logo logo o pequeno Ygor estava correndo e brincando com pedacinhos de gelo. Antes de dormir ChuYu contava-lhe sempre a história dos brinquedos invisíveis que existiam em sua longínqua terra natal. Eram brinquedos feitos com sobras da aurora boreal: restos de cores e sombras, luzes esparsas e difusas que corriam ligeiras pelo céu - bem ao alcance das mãos naquela região tão próxima das estrelas - e alguns nacos de gelo com os quais se faziam pirâmides coloridas. As crianças que entravam dentro daquelas pirâmides ficavam invisíveis durante quase uma hora; tempo em que as luzes permaneciam no interior dos seus corpos. Os brinquedos invisíveis eram também conhecidos como crianças-luzes. Mas só conseguiam participar crianças com menos de seis anos. Não se sabia a causa, mas como na Groenlândia um dia ou uma noite podiam durar seis meses, era tempo suficiente para aproveitarem bastante os efeitos dos restos da aurora boreal. ChuYu dizia que os brinquedos duravam até os seis anos porque era quando as crianças começavam a tomar juízo e a fantasia escorria-lhes perna abaixo indo parar nos trópicos. Assim ela acreditava, assim ela contava e também assim o pequeno Ygor ouvia maravilhado a história dos brinquedos invisíveis.

Em Crato, um fenômeno semelhante acontecia para o pequeno Igor. Waldicea, muito nova para cuidar do filho cego, também teve a ajuda de Ingazeira, uma velhinha muito velhinha que de tão velhinha não lhe sobrava no rosto mais nenhum lugar para ter rugas. E cada ruga era um ano seu de vida, como ela mesma dizia desdentada e sorridente. E ao pequeno Igor, por incrível que pareça, Ingazeira também contava a história dos Brinquedos Invisíveis. Existia, contava ela, um riacho encantado de águas muito limpinhas, cristalinas e pedras branquinhas. Como que se soube disso? Ora, por descuido. Certo dia, uma menina de dois anos caiu bem dentro do tal do riacho e os pais prantearam muito por acharem que ela havia se afogado. Uma hora depois do procura aqui, mergulha dali, a menina apareceu bem diante do nariz deles vivinha da silva. Foi assim que o riacho ganhou fama. Mas, igualmente aos restos da aurora boreal, era só para crianças até seis anos de idade. Depois dizia ela, ficava tudo burro, igual a adulto, e perdia a mágica do desaparecimento. Quando as crianças desapareciam elas podiam ser qualquer coisa por uma hora: passarinho, ninho, borboleta, traíra, cabra, cactos, nuvem, aliás, quase tudo, menos chuva. Ah, isso no sertão não. Ninguém brincava de ser o que não conhecia. E brincadeira de criança é coisa muito séria.

Mas vai que um dia, quando Ygor e Igor tinham exatamente quatro anos, aconteceu o inesperado.

Na Moldávia, apareceu um comandante de um navio cargueiro oferecendo levar Ygor para fazer um transplante de córnea.

Em Crato, uma turma do projeto Rondon veio com a boa nova de que conseguiriam levar Igor para os Estados Unidos para realizar um transplante de córnea. Assim, no mesmo dia e quase na mesma hora, se não fossem os fusos horários, Ygor e Igor deixaram para trás suas famílias e zarparam para o mesmo destino: Houston Hospital, no Texas. Entraram na fila do transplante e lado a lado realizaram a cirurgia de transplante de córnea. E o destino quis que ficassem na mesma enfermaria e o destino quis ainda que só ChuYu e Ingazeira tivessem acompanhado seus ‘netinhos’.

E se esta história está cheia de mágicas não custa nada fazer com que as duas velhinhas começassem a falar a mesma língua. E cada uma contou a sua história pessoal e cada uma contou para o outro (Y)Igor, a história dos Brinquedos Invisíveis. Mas foi então que algo de muito estranho se sucedeu. Ygor e Igor se olharam pela primeira vez. E um viu o rosto do outro. E viram como eles eram idênticos: ambos tinham – agora – os dois olhos, uma boca, um nariz, duas orelhas, dois braços, duas pernas, ambos olhavam, ambos se admiravam, porém uma nota triste: nada mais lhes era invisível. Assim, pela primeira vez eles compreenderam e, abraçados, choraram.   

Carlos Eduardo Leal

terça-feira, 17 de março de 2009

outras palavras / As dobras da paixão

Tempo de reconhecimento

Talvez este seja o tempo de contar uma pequena história. Houve um tempo em que existia um grupo chamado Veredas. Era um grupo de estudos que se reunia para ler e escrever literatura (sob a batuta suave-lírica da Adriana B. Guedes) e, talvez, psicanálise (sob a escuta e o olhar deste autor). Dele faziam parte além de mim e da Adriana (que escreveu o conto Bala Perdida, publicado aqui em Outras Palavras), o Mauro, a Silvana, a Paula (que acabou de escrever aqui também em Outras Palavras  o poema Confiar. Agora chegou a vez de uma outra verediana (era assim que carinhosamente nos chamávamos) a Ana Paula, a escrever com os sentimentos da sua bela alma luso-brasileira As dobras da paixão. Assim, este grupo se transformou neste blog que retorna, como um mito do eterno retorno, ou como algo que estava recalcado no inconsciente, aos textos que sempre nos enlaçaram, nos recriaram e, que agora, trans-bordam. 

Outra parte de mim, mas não menos importante, agradece a Eugênia Ribas Vieira (editora da Rocco e que também escreve no blog Editoratrix), ao incentivo para que eu fizesse um blog e publicasse meus textos. 

Carlos Eduardo



As dobras da paixão

 

Ana Paula da Costa Gomes

 

Nos primórdios

Do amor e do ódio

São as entranhas do teu corpo

As dobras da paixão

Percorridas nas minúcias

Pelos meus dedos

Entre pernas, braços, pescoço

E as delícias do teu baixo ventre

Vem, entre

 

Vem o tempo, contratempo

Que se esvai entre os dedos

Que não mais te percorrem

Mas te prendem

E se desdobram

Na procura do cheiro

De paixão já vivida

Agora adormecida

 

São as dobras

Que se desdobram

E não se dobram

Com o tempo

Com os dedos

Que se diz dobra

De uma paixão.

quinta-feira, 12 de março de 2009

outras palavras / Confiar

Paula nos tece palavras. Sua poesia nos com-fia seus desvelos, seus novelos, suas tessituras mais íntimas, mais ínfimas e, portanto, grandiosas e tórridas. O amor retira as pétalas das palavras, mas os poetas as replantam. Outras palavras traz o replantio inesgotável através do qual só os poetas nos fazem sonhar.

Carlos Eduardo

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CONFIAR


     CONFIO

     COM FIO, TEÇO, AMARRO, AMORDAÇO

     CONFIAR

                 AR QUE RESPIRO, TRANSPIRO, SUGO.

 

SEI QUE VOCÊ ME PERTENCE

                                      PERTO, AQUI, DENTRO

                                      PARTE DE MIM.

                                      PAR

                             INSEPARÁVEL

                                       

ACORDO!

A CORDA               ARREBENTOU

A COR DO AMOR       DESBOTOU.

                   AMOR  SEM ALMA, SEM ROSTO

                                                           DESGOSTO

                                                       NÃO GOSTO


 
                                                          DESGOSTO.

 

 

    CORRO, CHORO,   DESCUBRO

                                    QUE   COBRI A   VERDADE

                                                         RI AO VER QUE VOCÊ NÃO EXISTE.

 

 

AO VENTO

   INVENTO

RECOMEÇO

            MEÇO O FIO.

                              FIO

                     CONFIO ? SEM FIO.

                                           DESFIO UMA VIDA

                                                                        IDA,

                                                             PARTIDA,  VAZIA.


Paula Saraquine

 

 

terça-feira, 10 de março de 2009

Casablanca - Humphrey Bogart e Ingrid Bergman

Quantas vezes ainda verei Casablanca? Quantas vezes ainda me emocionarei com os belíssimos diálogos e Sam cantando As time goes by?
Alguns diálogos ficaram famosos. Vale a pena relembrá-los:
Logo no início, quando uma garota pergunta a Rick (Humphrey Bogart, dono do restaurante Ricks) o que ele fez na noite anterior, ele responde: “Faz muito tempo para que eu me lembre”. Na mesma conversa, a moça insiste para saber o que ele fará mais tarde, e obtém a clássica resposta: “Não costumo fazer planos a longo prazo”. Em outro momento, após Ilsa (Ingrid Bergman) contar para seu marido, Victor, como ela e Rick se conheceram em Paris, este suspira: “Eu me lembro de todos os detalhes. Os alemães vestiam cinza e você, azul”. Em uma das recordações dos momentos que passaram em Paris, Ilsa diz duas frases célebres quando os alemães invadem a cidade: “Isso foi o barulho de um canhão ou o meu coração que deu um salto?” e na despedida com Rick: “Beije-me. Beije-me como se essa fosse a última vez”. Os dois acabam decidindo fugir juntos, mas, na última hora, Rick manda Ilsa ir embora com seu marido. Neste momento, os dois travam o diálogo mais célebre do filme: “E nós, Rick?”, pergunta ela. “Nós sempre teremos Paris”, ele responde. 
Enquanto assistia ao filme, uma outra cena se passou ao meu lado quase que despercebida. Uma senhorinha, que já passava dos oitenta, mas extremamente lúcida e ainda cheia de sentimentos, soltou um longo suspiro e disse num tom quase confessional: "Só quem já viveu uma grande paixão sabe da dor de uma perda destas".
Casablanca continua emocionando e fazendo reviver na vida de cada um nossas eternas cidades imemoriais. Eternidade que só a cumplicidade dos amantes protege como quem guarda uma flor seca, vivamente seca, dentro do livro de cabeceira. 
E a cada vez que se abre o livro de cabeceira, a flor parece proferir com a força da saudade o nome que secretamente ainda guarda, como que para relembrar que 'sempre haverá Paris'.  


AS TIME GOES BY

Letra e Música de Herman Hupfield

You must remember this,
A kiss is still a kiss,
A sigh is just a sigh;
The fundamental things
[apply

As time goes by.
And when two lovers woo,
They still say, "I love you ",
0n that you can rely;
No manter what lhe future
[brings
As time goes by.

Moonlight and love songs,
[never out of date,
Hearts full of passion,
jealousy and hate;
Woman needs man, and
man must have his mate,
That no one can deny.

lt's still lhe same old story
A fight for lave and glory,
A case of do or die
The world will always
[welcome lovers
As time goes by.

 




sábado, 7 de março de 2009

outras palavras / Miragem


Dando continuidade aos textos postados por outros autores/leitores/seguidores ou não deste blog, Michelle nos apresenta dentro desta rubrica que se chama outras palavras, sua 'Miragem' atravessada/causada/impactada/aturdida sempre pelos belos textos beckettianos.  

Carlos Eduardo





Miragem

 

Levantou a cabeça e se olhou no espelho. Devia ser em torno de três e pouco da madrugada. Fazia muito frio lá fora, talvez nevasse até. Tinha ligado o chuveiro para deixar a água bem quente como de costume. Nada como uma boa ducha quente de madrugada. A quentura da água formava nuvens de vapor que se expandiam por todo o banheiro. Um pouco como a neblina que fazia lá fora, na rua escura. Era gostoso sentir a sensação de torpor percorrendo e se apropriando de cada parte de seu corpo. Do dedão do pé subindo pelas panturrilhas e nádegas, o vapor ia amolecendo o corpo com pequenas gotículas por toda a linha da coluna até se instalar na nuca onde causava uma espécie de frisson. Sua cabeça latejava. Andreas[1] se aproximou do pequeno espelho preso na parede antes do seu ritual no chuveiro quente.

Levantou a cabeça e se olhou no espelho. Não conseguia enxergar o seu rosto, pois o espelho estava muito embaçado. Foi passando suavemente o seu dedo indicador na superfície escorregadia. O vidro rangia. Fazia desenhos com a ponta do dedo, como as crianças gostam de brincar. Até que finalmente conseguiu enxergar. Mas aconteceu uma coisa estranha. O que Andreas viu no espelho foi o rosto de uma mulher, uma bela mulher. E era incrível a semelhança entre a mulher do espelho e o rosto de sua mãe quando jovem. Andreas achou que era mesmo a sua mãe. Três batidas seguidas na porta do banheiro. Em seguida, a voz de um homem chamou o seu nome.

Levantou a cabeça e acordou assustado. Havia chorado e suava muito. Precisava ir ao banheiro lavar o rosto. Sentiu medo de se olhar no espelho. O meu olhar é nítido como um girassol, pensou lembrando de um poema que leu algum dia, em algum lugar.

Levantou a cabeça. Sua cabeça latejava. Andreas se olhou no espelho, mas foi estranho o que ele viu. Sua cabeça não parava mais de latejar.

Michelle Nicié


Atriz, doutoranda em Teatro (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO) e crítica teatral da Revista Eletrônica Questão de Crítica.


[1] Andreas, do grego, significa força, coragem e virilidade. Pode ser encontrado na forma feminina Andréia, Andréa (“mulher de poder”) ou na forma masculina André (“o corajoso, o viril”). Na forma Andrea pode ser usado por homens e mulheres.

Pequena homenagem para Ela



Ela sempre esteve ali, bailando diante de todos. Não, não era só para mim. Eu não possuía a exclusividade do olhar, embora meu voyeurismo me convocasse ao mais. Fitava-a como quem se perde em seu próprio olhar e esquece a seiva das estações que engolem Os trabalhos e os dias, como queria Hesíodo. Mas eu era o cumplíce feroz da sua delicada sedução. Sorria, quando ela sorria para mim e ficava tentado a abraçá-la, coisa que só fiz, confesso, algumas poucas vezes. Não sei se alguém notou e se notaram não houve jornal que publicasse uma foto por testemunha. Mas pouco teria me importado se me vissem atracado com ela. Eu a amava acima de tudo. Eu amava sua textura, seus silêncios e sua doce e respeitosa cordialidade. Ela, como boa amante, correspondia à altura aos meus arroubos de paixão. Era a sombra para o calor da minha vida e também o prévio testemunho que antecipava as grandes tormentas. Eu sempre soube que ela não queria alcançar os céus, mas não queria deixar de ter a possibilidade de... Minha querida, não existe maior liberdade do que a liberdade de escolha, e ceifaram precocemente esta liberdade que avizinhava sua existência. Você só queria estar, ser, permanecer. Mas você não era um verbo, aliás, era todos. Você era O Verbo. Talvez, algum antepassado seu tenha visto o primeiro homem, aquele da queda. Agora parece uma vingança. Tardia e espúria vingança. Você só queria fazer vínculos, mesmo que fossem efêmeros como os passantes. Não queria muito, não pedia nada, mas não era serviçal. Não, tudo menos se curvar aos arrogantes da política, tudo menos se enfileirar diante dos regrados e cegos soldados de cavalaria que marcham para o fundo do rio como os ratos do flautista de Hamelin sem ao menos soltarem um grito de contestação. 
Com você não foi assim. Você gritou. Lutou bravamente o quanto pode. Eu mesmo testemunhei a sua luta, a sua queda. Tentei empunhar uma arma para te defender, mas só me saíram palavras. Elas, estas aqui, são de pouca valia, bem sei. Mas são minhas, exclusivamente minhas. São partes extemporâneas do meu grito amalgamado ao seu. As palavras são pequenos fragmentos que se desprenderam de mim para atravessarem a rua numa espécie de solidariedade atemporal que só os verdadeiros amantes possuem.
Tomei mais um gole do Comenda. As palavras tornaram-se tristes - embebidas que ficaram -, mas não menos amor-tizadas. Engraçado, até então minhas palavras pareciam mais arborizadas, frondosas como se diz. Mas hoje, parece que cada letra, cada sílaba, secou. A palavra silenciada ainda é uma palavra? 
Hoje, acordei com o barulho de uma motosserra. Incrédulo, olhei pela janela e alargavam a calçada para os transeuntes. Pessoas que não irão mais te ver. Aumentaram o caminho para os passantes, mas mataram quem lhes dava sombra para os fragmentos/pequenos instantâneos de sombra e luz, conforto e vida.  

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segunda-feira, 2 de março de 2009

outras palavras

outras palavras

A partir de hoje, o Veredas: Literatura e Psicanálise inicia um outro movimento, outras veredas, novas palavras. Está oficialmente aberta a temporada de novos textos de outros autores, nem sempre tão novos e/ou iniciantes mas, enfim, que tenham um gosto pela literatura, que se afinem através das palavras com a proposta do Veredas que não é um blog autoral, confidencial muito menos pessoal. Daí a proposta de receber outros textos, outras intertextualidades, outros olhares, novos pensares. Um escambo literário se posso assim dizer e que pretende acabar de vez com o banzosaudosista de ter o que dizer mas não saber aonde. Então, se você leitor também escreve, e acha que o seu texto se afina com o Veredas, encaminhe seu escrito para: celeal01@gmail.com  Seu texto será avaliado por um Comitê Central, uma Banca Examinadora, etc, etc, etc, composto por mim, eu e outros eus que há em mim. Portanto, não tenha medo(rs) e arrisque-se através das palavras. O texto inaugural chama-se Bala Perdida e é da minha amiga Adriana B. Guedes. Adriana possui rara sensibilidade para perceber o mundo em suas delicadezas e o ardor pela leitura e isso transborda ricamente para o seu texto. É também uma referência imprescindível em literatura infanto juvenil. Com ela não tem bala perdida, mas palavra achada. Então, vamos nos perder em seu texto?

Abraços,

Carlos Eduardo Leal  




                                                      BALA PERDIDA

 

                Lisa nunca havia gostado de seu nome. Achava-o superficial, vazio, pequeno: simples.  Era afeita a caminhos tortuosos, ásperos, esburacados; tinha uma simpatia especial pelo “trash” – como costumava dizer. Quando viajava, procurava pelas trilhas mais perigosas, pelos ônibus que andavam aos solavancos. Não aceitava a vida que desejaram para ela, desde seu nascimento, desde a escolha do nome: Lisa. Na praia, ainda menina, não construía castelos ou caminhos intermináveis na areia: preferia as ondulações sem sentido ou os buracos de esperança que cavava sem nunca achar o fim. Não contava encontrar um homem que pudesse gostar de sua força bruta, de sua insaciável busca pelo que não sabia. Não imaginava que pudesse haver no mundo homens que gostassem de mulheres que sendo Lisas não fossem verdadeiramente lisas.

                Mas havia.

                Havia apenas um.

                Todos os dias ele acordava com uma discreta aparência e fazia sua rotina acontecer de um modo previsível, cronometrado, organizado, superficial. Não se metia em confusão: não desejava além do que a vida ia lhe dando, generosamente. Preferia o dia, a pedra, andar a pé, comer sua própria comida – “é mais seguro” – dizia Armando.  Caminhava, para manter o mesmo peso, todos os dias, os mesmos seis quilômetros, pelo mesmo lado da rua, que também era sempre a mesma, que daria sempre no mesmo lugar.

                Onde?

                Ninguém sabia.

                Lisa e Armando jamais se encontraram.

                Que importa?

                O amor não é assim?

                Ainda que tivessem se encontrado, jamais de conheceriam.

                E se se conhecessem inteiramente, jamais se amariam.

                Ainda hoje, quando Lisa se olhou no espelho, reparou no tempo, nas escavações das horas que passam, no seu rosto cheio de rugas. Sorriu. Não era mais Lisa. Mudara.

                Ainda hoje, quando Armando se olhou no espelho, reparou no tempo, nas transformações que sofrera seu rosto, sempre tão sereno, sempre tão suave. Chorou. Não era mais Armando. Mudara.

                Lisa e Armando jamais se encontraram.

                Que importa?

                A vida não é assim?

                Ainda que tivessem se amado, já não se reconheceriam mais.

 

                                                         Adriana Bittencourt Guedes