quinta-feira, 23 de abril de 2009

As mãos de Clarice

Clarice esboçou um sorriso. Na verdade era um sorriso quase triste. Tudo na sua vida parecia se resumir àquele momento da sua infância em que levada pela mão do seu pai tocou no rosto do seu avô já desfalecido na cama. Ela não sabia o por quê, mas aquela sensação de frieza daquela carne em suas mãos faziam-na tremer de medo toda vez em que o frio da noite ameaçava rugir contra o agasalho protetor da sua lembrança encobridora. A morte dançava diante dela sem que ela ainda soubesse o que era a felicidade.
No dia seguinte, seu pai a levou para o parque e a empurrou por horas seguidas no balanço, seu brinquedo preferido. Adorava sentir o vento em seu rosto, seus cabelos correndo soltos contrários ao seu movimento. Pela vida toda Clarice queria lembrar do balanço e do seu pai, mas a frieza daquela carne cortava-lhe a garganta e o choro convulso corria em seu rosto. Havia naquele toque algo que ficara impossível de ser dito como uma lua encoberta por uma nuvem que só a claridade ao redor a denuncia, mas não é o suficiente para sabermos em que fase ela transita pelos céus naquela noite.
Clarice nascera cega. Jamais enxergara a luz do dia, muito menos as estrelas da noite. Via tudo leitoso, embaçado como um susto. Seus olhos eram suas mãos e suas mãos eram responsáveis por tudo aquilo que tocava. Ao contrário do rei Midas, tudo que ela tocava virava realidade por mais dura que fosse. E aquele rosto do seu avô era a dureza mais triste que ela havia sentido porque ele foi acompanhado pelo silêncio. Um silêncio de histórias que eram iluminadas pelo avô toda vez que Clarice ia dormir na casa avoenga. 
Isso durou até seus doze anos quando foi tocada pela música. Era a música mais bela que já havia escutado. Vinha de um lugar que não lhe era desconhecido, apenas ela ainda não o havia habitado. Na verdade, ela nem sabia que podia caminhar por dentro das notas musicais. E as notas foram lhe abrindo caminho e o rosto do seu avô já não doía tanto assim em suas lembranças. Clarice agora cantava e seu canto empurrava para detrás da sua retina opaca, toda o medo que habitava seu interior. Foi estudar canto e cantava com luz, tal como um passarinho na alvorada de uma manhã ensolarada.  
Clarice esboçou um sorriso, mas já não era de tristeza. Era sua primeira apresentação para uma plateia totalmente desconhecida. Mas ela não teve medo. Medo ela sentiu aos quatro anos e pensou que o carregaria para sempre. Agora, seu frio na barriga era um frio da descoberta do amor, o amor pelo mundo. E era a música que descortinava o mundo. E era ela quem produzia seu próprio caminhar seu desafinar seus passos. 
Ao terminar a apresentação, os espectadores aplaudiram de pé durante um longo tempo aquela menina que ao cantar iluminada pela sua alma, iluminava tudo e todos ao seu redor. 
E foi assim que pela primeira vez suas mãos tocaram aos céus. 

4 comentários:

VIRGINIA L. DE PAIVA MELLO disse...

Quando mudamos o "foco", mudamos nossa realidade.
bjus*

Ana Paula Gomes disse...

As mãos que teclam o piano, são as mesmas que teclam letras;de filmes, músicas, livros. Só assim, às vezes, se vê a luz na escuridão!
Lindo!

Ana Paula Gomes

Isis disse...

Dudu que lindo!
Pensei nas rendeiras, que tecem, cruzam linhas formando lindos desenhos. Os escritores tecem palavras que emocionam, nos modificam.
Em Clarice há delicadeza, como na alma de quem escreveu.
Beijo grande
Isis

celeal disse...

Ah, as mulheres rendeiras, Isis. É verdade, tecem tramas como quem tece palavras. É preciso ser mulher para saber das rendas. Vou aprendendo...rs. Olê muié rendeira!
Bjs, adorei seu comentário.
Pensando na Virginia e na Ana Paula, quando mudamos o "foco" podemos jogar "luz na escuridão".
Bjs e continuem com seus comentários pq também jogam luz nas minhas palavras.